Vários chapéus, uma só cabeça: a unidade da Igreja

O fato eclesial de maior destaque desses últimos dias foi, sem dúvida, a peregrinação do papa Francisco à Terra Santa, com vários momentos muito significativos. O principal deles foi o encontro com o patriarca ecumênico greco-ortodoxo Bartolomeu 1º, na basílica do santo sepulcro, dia 25 de maio.

Francisco quis repetir, 50 anos depois, o encontro histórico de Paulo VI com o patriarca Atenágoras, que aconteceu ainda em pleno andamento do Concílio Ecumênico Vaticano II. Aquele memorável encontro rompeu o gelo entre Roma e Constantinopla, que perdurava há vários séculos, sem que tivesse havido mais nenhum encontro entre um papa de Roma e um patriarca ortodoxo de Constantinopla.

O abraço entre os dois chefes de Igrejas abriu imensas esperanças para o caminho ecumênico, tão desejado pelo Concílio, levando a crer que, em breve, poderia acontecer a reconciliação plena entre as duas Igrejas e a reconstituição da unidade entre católicos e ortodoxos, rompida pelo cisma do Oriente, em 1054. A questão mais complicada nas relações ecumênicas entre as duas Igrejas é eclesiológica, relativa ao primado do sucessor de Pedro e ao exercício do ministério petrino na Igreja.

Em 25 de julho de 1967, iniciando o ano da fé em memória do 19º século martírio dos apóstolos Pedro e Paulo, e já tendo sido encerado o Concílio, Paulo VI escreveu ao mesmo patriarca Atenágoras, com o propósito de avançar no caminho ecumênico: “este desejo leva a uma vontade resoluta de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que chegue o dia do restabelecimento pleno da comunhão entre a Igreja do Ocidente e a Igreja do Oriente”.

Muito caminho de aproximação tem sido feito ao longo desses 50 anos, mesmo que isso não apareça sempre claramente a todos: foram levantadas as recíprocas excomunhões, instaurou-se um diálogo teológico e mesmo doutrinal entre as duas Igrejas; acontecem gestos de recíproco apreço, como a presença de um representante do Patriarca de Constantinopla na solenidade de São Pedro e São Paulo e de um representante do Papa na festa patronal de Santo André, no patriarcado de Constantinopla. Mais que tudo, foi significativa a presença do próprio patriarca Bartolomeu 1º na missa de início do pontificado do papa Francisco, no dia 19 de março de 2013.

Agora, no encontro ecumênico de Jerusalém, muito desejado por Francisco e patrocinado pelo Patriarca ortodoxo, esse caminho ecumênico retoma fôlego. A Declaração comum entre os dois chefes de Igrejas deixa claro o propósito de buscar a plena unidade e de não se deixar abater pelas dificuldades que o caminho da unidade plena apresenta. Os discursos diante do monumento ao santo sepulcro recordaram bem: não parecia também o túmulo o fim de toda esperança? E eis que ele está vazio! Jesus venceu até mesmo a morte, último obstáculo para a realização do desígnio de Deus. Pode haver algo impossível para que o sonho da unidade plena da Igreja se realize?!

Claramente, as dificuldades não são desconhecidas ou subestimadas, nem pelo papa, nem pelo patriarca. Mas as falas foram repletas de esperança e de convites à perseverança, na firme certeza de que o desejo expresso de Jesus não é a divisão, mas a unidade da sua Igreja. Durante a cerimônia ecumênica, alguém comentou sobre a variedade das vestes dos representantes das Igrejas cristãs, sobretudo dos solidéus, véus e capuzes de ortodoxos, armênios, coptas, católicos latinos, armênios, maronitas, coptas, melquitas… “Os chapéus são diversos mas… uma só é a cabeça da Igreja”. Mesmo se as tradições rituais, disciplinares e histórico-culturais são diversas, a unidade da Igreja se constrói sob a única cabeça do corpo, que é Cristo, Senhor da Igreja.

Publicado em O SÃO PAULO, ed 27 05 2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo

OSP – Nos dias 13 e 14 de maio o senhor participou da reunião do Conselho da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, em Roma. O que vem a ser o Sínodo dos Bispos?

R – O Sínodo dos Bispos é um Organismo da Igreja, instituído pelo papa Paulo VI em 1965, no final do Concílio Vaticano II, para expressar de maneira mais eficaz a colegialidade episcopal e a responsabilidade de todo o episcopado, junto com o Papa e sob a sua autoridade, pelo bem da Igreja inteira. O Sínodo é presidido pelo Papa e tem em Roma uma Secretaria Geral permanente; tem também um Conselho, formado de 15 cardeais de várias partes do mundo. Reúne-se em assembléias gerais ordinárias periódicas e também pode haver assembléias extraordinárias, como aquela que vai acontecer em outubro. Das assembléias participam representantes das Conferências Episcopais de todo o mundo, além de outros membros, convidados pelo Papa.

OSP – Quem escolhe o tema das assembléias?

R – Sempre é feita uma ampla consulta às Conferências Episcopais e outros Organismos eclesiais; finalmente, o Papa escolhe o tema, entre várias propostas apresentadas a ele.

OSP – Qual foi o objetivo da reunião dos dias 13 e 14 de maio?

R – O Conselho ocupou-se, sobretudo, da elaboração do Instrumentum laboris (Instrumento de Trabalho), que é o texto de trabalho feito a partir das sugestões vindas das Conferências Episcopais e de outros Organismos eclesiais de todo o mundo. O tema, já conhecido, tratará dos desafios da evangelização diante das situações atuais da família e do casamento. O questionário enviado no ano passado às Dioceses de todo o mundo resultou num grande número de contribuições, mostrando o interesse especial que a temática despertou. O Instrumento de Trabalho será publicado e reunirá, de maneira temática e orgânica, essas contribuições e as apresentará como “objeto” de trabalho para a assembléia do Sínodo de outubro próximo.

OSP – O tema despertou muito interesse em toda parte. Como serão as respostas da Igreja às perguntas feitas?

R – O papa Francisco pediu que todos rezem na intenção do Sínodo, para que o Espírito Santo ilumine e conduza a Igreja nas orientações que ela deve dar. Não podemos antecipar decisões que ainda não foram tomadas, nem criar expectativas irreais. O primeiro objetivo desta assembléia do o Sínodo é uma grande tomada de consciência da situação em que vive a família, sobretudo dos problemas que ela enfrenta; sabemos, de antemão, que há várias situações problemáticas. O papa Francisco chamou para refletir sobre o que a Igreja deve fazer diante dessas situações. Ela não pode mudar as palavras de Cristo nem sua própria doutrina, mas pode ter um trato pastoral novo, para não deixar as pessoas sem esperança, nem dar a impressão de que ela não tem mais nada a dizer diante de certos casos irregulares, segundo sua doutrina.

OSP – Quem participará da assembléia extraordinária de outubro deste ano?

R – Conforme o Regulamento do Sínodo, participarão os presidentes das Conferências Episcopais, os Patriarcas e os Arcebispos Maiores das Igrejas Orientais Católicas “sui iuris”, além de outras pessoas que o Papa pode convidar. Poderão ser umas 180 pessoas.

OSP – Como o tema da assembléia extraordinária deste ano vai se relacionar com o tema da assembléia ordinária do Sínodo dos Bispos, que acontecerá em outubro de 2015?

R – Serão dois momentos de um único caminho; a temática de fundo refere-se à pessoa humana, à família e ao casamento, à luz do Evangelho e da fé cristã. Neste ano, a reflexão será sobretudo sobre as situações desafiadoras atuais da família e do casamento para a evangelização; no próximo ano, tratar-se-á de olhar para essa realidade a partir do Evangelho e da vocação à vida nova “em Cristo”, para chegar a orientações pastorais e eventuais decisões, em vista da evangelização mais eficaz. Há muito trabalho a ser feito!

OSP – O Sínodo dos Bispos foi instituído por Paulo VI há quase 50 anos. Continua uma Instituição atual ainda hoje?

R – Certamente! É claro que também o modo atuação do próprio Sínodo precisa ser adequado e atualizado de tempos em tempos. E o papa Francisco está atuando para isso. A propósito, o papa Paulo VI será beatificado no domingo, 19 de outubro, dia do encerramento da assembléia extraordinária do Sínodo dos Bispos.

Publicado em O SÃO PAULO, Ed 20 05 2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo

Nos dias 13 e 14 de maio, o Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, formado de 15 cardeais e bispos, reuniu-se em Roma; pauta principal dos trabalhos foi a preparação da próxima assembleia extraordinária do Sínodo, programada para os dias 5 a 19 de outubro deste ano.

Tratou-se, sobretudo da elaboração do Instrumentum laboris (Instrumento de trabalho) da assembléia sinodal, um texto que será publicado em breve e enviado às Conferências Episcopais e, sobretudo, àqueles que deverão participar da assembleia de outubro.

O Instrumento de trabalho vai recolher as respostas ao questionário, para conhecer a situação atual da família e de várias questões relativas ao casamento e à família, enviado em 2013 às Conferências Episcopais de todo mundo. As contribuições foram abundantes e serão apresentadas de maneira temática no Instrumentum laboris, para orientar os trabalhos sinodais.

O tema do sínodo extraordinário despertou grande interesse e expectativa por toda parte: várias situações de crise e questões atuais da família e do casamento interpelam a Igreja e sua ação evangelizadora.

Fazem parte do temário a difusão e a aceitação do ensinamento da Igreja Católica sobre o casamento e família; as dificuldades para colocar em prática esse ensinamento no contexto cultural contemporâneo; as situações difíceis que muitos casais e famílias enfrentam, com casamentos desfeitos e refeitos com nova união; sua participação na vida da Igreja e a transmissão da fé aos filhos em tais situações… Mas entram também as questões novas, como o fato sempre mais presente em vários contextos culturais de pessoas que não se casam mais, nem constituem uniões estáveis ou famílias; ou os fatos recorrentes, em vários países, de políticas contrárias à família; sem esquecer as uniões civis de pessoas do mesmo sexo.

Ciente das várias situações problemáticas que a família atravessa, a Igreja não a abandona, pois também conhece o plano salvador de Deus em relação ao casamento e à família; e tem convicção sobre a importância da família para a pessoa, a sociedade e para a própria vida e missão Igreja. Por isso, ela quer anunciar de maneira renovada a Boa Nova do casamento e da família, especialmente nas situações mais difíceis e problemáticas que a atingem.

A assembléia extraordinária de outubro próximo não vai esgotar o tema e seus trabalhos estarão orientados para novas reflexões na assembléia ordinária do Sínodo dos Bispos, em outubro de 2015, quando se tratará da pessoa humana e da família à luz de sua vocação em Cristo. Serão dois momentos complementares de um caminho de evangelização, que tem como centro a antropologia cristã e suas implicações para a pessoa, o casamento, a família, a sociedade e a Igreja.

O papa Francisco participou um dia inteiro da reunião, sinalizando para a importância dada por ele ao Sínodo extraordinário de outubro. Ele tem falado também da importância do próprio organismo do Sínodo dos Bispos, criado por Paulo VI no final do Concílio Vaticano II, em 1965, como expressão de colegialidade e da responsabilidade de todos os bispos, junto com o Papa, em relação à Igreja inteira.

Publicado em O SÃO PAULO, Ed 20 05 2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo

Ao clero, Religiosos e Leigos da Arquidiocese de São Paulo

Caríssimos,

Conforme já foi divulgado por noticiários do Vaticano, o papa Francisco proclamará “santo” o bem-aventurado Padre José de Anchieta no próximo dia 02 de abril, mediante a assinatura e a publicação do Decreto da canonização.

Esta canonização, há muito esperada por nós, é motivo de especial alegria para todo o Brasil, uma vez que Anchieta é o “Apóstolo do Brasil”, assim proclamado já no seu funeral, em 1597. Ele marcou profundamente o início da evangelização, não apenas em São Paulo, mas em boa parte do Brasil. No centro histórico da capital paulista, o Páteo do Colégio lembra que Anchieta foi um dos fundadores desta cidade e também um dos iniciadores da Igreja nesta metrópole.

Por isso, vamos acolher a sua canonização com manifestações de júbilo e ação de graças a Deus. Convido os padres a fazerem tocar os sinos na mesma hora, em todas as igrejas e capelas da Arquidiocese no dia 02 de abril, às 14h00, por 5 minutos, ao menos.

Ao mesmo tempo, convido o povo a fazer celebrações espontâneas de louvor e agradecimento a Deus no mesmo dia 02 de abril, em horários que as paróquias podem marcar. A CNBB preparou um roteiro de celebração para a ocasião, que se encontra também no site da Arquidiocese (www.arquidiocesedesaopaulo.org.br), de onde pode ser baixado e impresso para o uso. Artigos sobre Anchieta também se encontram no mesmo site e podem ser úteis para falar ao povo sobre o novo Santo durante as celebrações.

Convido ainda a que, no domingo seguinte, dia 06 de abril, se faça especial louvor a Deus pela canonização de Anchieta, embora mantendo normalmente a liturgia do 5º domingo da Quaresma. A santidade, de fato, é a meta da Quaresma e da vida cristã…

Na Catedral da Sé, naquele mesmo domingo, dia 06 de abril, às 11h00, faremos um solene Te Deum laudamus pela canonização do Padre Anchieta; para essa celebração, serão também convidadas as autoridades do Município e do Estado. A Missa será precedida de uma procissão, saindo do Páteo do Colégio às 10h15 na direção da Catedral.

Os Padres queiram ajudar o povo das Comunidades a perceber a importância e o significado desta canonização e da própria figura de Anchieta, tão ligada a São Paulo e ao Brasil. Deus nos oferece uma ocasião singular para o testemunho eloquente do Evangelho do Reino e da ação amorosa de Deus junto de seu povo nesta cidade. Ao mesmo tempo, a Providência nos convida a renovar-nos na dimensão missionária e da caridade pastoral, olhando para “São” José de Anchieta.

Ad maiorem Dei gloriam” – Que seja tudo para a maior glória de Deus! “São” José de Anchieta, rogai por nós! Deus os guarde no seu amor.

Card. Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo

Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 25.03.2014

Completa-se o primeiro ano de Pontificado do papa Francisco. A fumaça branca da Capela Sistina, na noite chuvosa e fria de 13 de março de 2013, preparou a multidão ansiosa da praça de São Pedro uma bela surpresa: o novo Bispo de Roma e Sucessor do apóstolo Pedro, colocado no centro da Igreja Católica, era um cardeal que vinha “quase do fim do mundo”! Jorge Mário Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, que escolheu para si o nome de Francisco.

Passados os primeiros momentos de encantamento, o papa Francisco começou logo a mostrar seu estilo, seu jeito latino-americano, seu desejo de servir a Igreja Católica e a humanidade de corpo e alma. Tantos detalhes chamaram a atenção, como a moradia na Casa Santa Marta, em vez do palácio apostólico; a dispensa de muitos protocolos; seu jeito de pastor de almas; a forma direta e simples de falar…

Mas tudo isso, embora significativo, ainda não diz tudo sobre a novidade do primeiro papa não europeu, depois de muitos séculos, primeiro latino-americano, primeiro papa jesuíta, com jeito de franciscano… Francisco tem clareza sobre sua missão mais urgente, na condição de Sucessor de Pedro: confirmar os irmãos na fé, reanimá-los, dar-lhes novamente certeza e segurança interior, superar certo desalento e baixa auto-estima na Igreja, restituir ao povo católico a alegria do Evangelho, a identificação com a própria Igreja e o senso de pertença a ela.

Sabe que sua missão é resgatar a credibilidade da Igreja, ferida por muitos escândalos decorrentes de pecados e fraquezas daqueles que deveriam ser reconhecidos como testemunhas fidedignas do Evangelho da vida e da esperança diante do mundo… Francisco sabe que esta credibilidade só é recuperada com a retidão de intenções e atitudes, amor à verdade e sincera humildade. E ele convidou todos os membros da Igreja a fazerem isso, empreendendo um verdadeiro caminho de conversão a Cristo e seu Evangelho.

Muitos, talvez, esperavam imediatas e até espetaculares reformas na Cúria Romana e nos organismos de governo, que ajudam o Papa em sua missão universal. Francisco começou pedindo reformas nas atitudes e nas disposições de todos os filhos da Igreja; as reformas administrativas da Santa Sé chegam aos poucos e as da Cúria romana ainda devem chegar. Ninguém tenha a ilusão de que, na Igreja, tudo depende só da Cúria romana; Francisco tem falado mais vezes da necessária participação de todos e que cada membro da Igreja faça bem a sua parte, em vista da saúde do corpo inteiro.

Francisco quer uma Igreja que não seja auto-referencial, nem fechada sobre si mesma, mas discípula de Cristo e servidora do Evangelho para o mundo. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (“A Alegria do Evangelho”), ele apresentou as prioridades da missão evangelizadora no mundo atual: católicos felizes e agradecidos pela fé, percebida como dom precioso a ser compartilhado generosamente; uma Igreja que se faz missionária e se coloca em estado permanente de missão; a conversão constante ao autêntico espírito do Evangelho e a superação do “espírito mundano”, constante tentação para os cristãos e a Igreja; a saída para as periferias humanas e sociais e a solidariedade concreta em relação aos pobres.

Há muito para se fazer! Coragem, Papa Francisco, coragem! Deus o ilumine e guarde! E nós, além da admiração pelo Papa vindo da América Latina, também o acompanhemos neste esforço. Coragem, povo de Deus, coragem!

Artigo publicado em O SÃO PAULO, ed de 11.03.2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo

Nos primeiros dias de abril deste ano, o papa Francisco proclamará “santo” o padre José de Anchieta, um missionário que marcou profundamente o Brasil nos seus inícios.

Anchieta nasceu em San Cristobal de la Laguna (Canárias), em 19.03.1534; seu pai, Juan López de Anchieta, vinha de importante família basca, onde foi opositor político de Carlos V. Juan López, encontrando refúgio nas Canárias para escapar das perseguições sofridas; a mãe foi Mencía Díaz de Calvijo e Llerena, natural das Canárias.

José foi enviado para estudar em Coimbra quando tinha 14 ou 15 anos de idade; durante seus estudos de filosofia na universidade de Coimbra, teve contato com os jesuítas, apenas fundados como Ordem religiosa; em 1º de maio de 1551, José entrou na Companhia de Jesus. Enquanto na comunidade local eram lidas as cartas dos primeiros missionários jesuítas no Oriente, entre os quais, S.Francisco Xavier, nasceu em Anchieta o desejo de também seguir o mesmo caminho missionário; mas foi enviado ao Brasil pelo próprio Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus; em Salvador, de fato, já estavam em ação, o padre. Manuel da Nóbrega e alguns companheiros.

Partiu de Lisboa em 8 de maio de 1553 e desembarcou em Salvador no dia 13 de julho seguinte, ainda noviço e com apenas 19 anos de idade. Após um breve período de adaptação, acompanhou o Padre Nóbrega para a nova missão de Piratininga, onde chegaram em 24 de janeiro de 1554; no dia seguinte, festa litúrgica da Conversão do apóstolo São Paulo, foi celebrada a primeira missa nesta missão, que recebeu o nome de São Paulo, em homenagem ao Apóstolo-missionário. Esta data é reconhecida oficialmente como marco histórico da fundação da cidade de São Paulo.

Anchieta desempenhou ali um intenso trabalho no colégio, o primeiro dos jesuítas na América; ensinou a língua portuguesa aos filhos de índios e portugueses; mas também estudou a língua dos indígenas e compôs a primeira gramática da língua tupi; no mesmo idioma dos índios escreveu um catecismo, várias peças de teatro e hinos; compôs poemas e escreveu obras em português, latim e tupi e guarani.

Nos primeiros meses de 1563 acompanhou o padre Nóbrega na negociação da paz entre portugueses e tamoios; estes ameaçavam a colônia de São Vicente. Para dar provas de sinceridade na proposta de paz, Anchieta entregou-se aos índios como refém, ficando mais de 6 meses entre os Iperoig, enquanto Nóbrega e seus companheiros negociavam a paz com a Confederação dos Tamoios. Nesse mesmo período, nada fácil e de contínuos riscos para sua vida, Anchieta escreveu nas areias de uma praia de Ubatuba seu Poema à Virgem Maria.

Uma vez conseguida a paz, ele se dedicou às missões de São Vicente e de São Paulo, sempre atento à educação, à saúde e à assistência religiosa de indígenas e portugueses. No dia 6 de junho de 1566 recebeu, na catedral de Salvador, a ordenação sacerdotal. Tinha então, quase 32 anos de idade.

Em janeiro de 1567, partiu com o Padre Nóbrega para o Rio de Janeiro, para fundar o colégio local, que também regeu como reitor entre 1570 e 1573. Nos anos seguintes, foi o responsável pela missão de São Vicente, onde se dedicou sobretudo à catequese entre os índios Tapuias.

Enquanto isso, escrevia longos relatos aos superiores da Companhia de Jesus sobre suas atividades missionárias; fino observador dos usos e costumes indígenas, suas cartas estão repletas de elementos preciosos para os estudos antropológicos dos primeiros habitantes do Brasil. Mas também são muitas as suas anotações sobre a flora, a fauna, a geografia e o clima da terra brasileira. Anchieta pode ser considerado um dos primeiros antropólogos e naturalistas do Brasil.

Em 1576, tornou-se o quinto provincial da Companhia de Jesus no Brasil, ocupando esse cargo até 1587; apesar de sua saúde, nunca boa, empreendeu constantes viagens percorrendo o litoral desde Cananeia, no sul de São Paulo, até o Recife, para acompanhar as várias missões que os jesuítas já possuíam no Brasil. Foi também com a sua colaboração que tiveram início as reduções do Paraguai, com sede inicial em Assunção, e que se estenderam também para o território da Argentina e do sul do Brasil, ao longo dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai.

A essa altura, já trabalhavam 140 missionários da Companhia no vasto território do Brasil, aos quais Anchieta visitava duas vezes por ano, dando origem também a novas iniciativas missionárias, mesmo no interior do país, fundando escolas e colégios. No Rio de Janeiro, em 1582, iniciou a construção da Santa Casa de Misericórdia, destinada a assistir os doentes e as vítimas das frequentes epidemias.

Anchieta foi sempre um religioso interessado profundamente nas pessoas, dando especial atenção aos pobres e doentes, mas também aos grupos indígenas ameaçados e aos negros escravizados; percorria grandes distâncias para visitar algum doente. À noite, sobretudo, passava longas horas em oração e seu desejo era levar a todos a luz do Evangelho de Cristo; a educação era parte integrante de seu trabalho missionário; soube respeitar e valorizar os elementos culturais dos povos originários do Brasil.

Em 1587, deixando o cargo de superior provincial, respondeu por vários anos, como reitor, pelo colégio de Vitória. Ali começou a sentir mais fortemente a doença que o levaria à morte em 9 de junho de 1597, enquanto se encontrava em Reritiba, uma localidade no Espírito Santo por ele mesmo fundada e que recebeu, mais tarde, o nome de Anchieta.. Seu corpo foi levado para Vitória, para os solenes funerais, durante os quais, ele já foi reconhecido como ”apóstolo do Brasil”.

Publicado em O Estado de São Paulo em 08.03.14

Cardeal Odilo Pedro Scherer – Arcebispo de São Paulo

Agora já não se trata só de um profundo desejo da Igreja do Brasil, nem apenas de uma possibilidade. A Santa Sé confirma, pelas palavras do cardeal Angelo Amato, Prefeito da Congregação das Causas dos Santos, que Anchieta será canonizado pelo Papa Francisco no início de abril deste ano.

A canonização será feita por um decreto do papa Francisco, como foi feito no caso recente de São Pedro Favre, primeiro sacerdote da Companhia de Jesus. Com Anchieta, serão canonizados também dois missionários da América do Norte: de Dom Francisco de Laval (1623-1708), primeiro bispo do Canadá e de toda América do Norte, e de Irmã Maria da Encarnação (1599-1672), missionária ursulina, também do Canadá.

Depois, após a canonização, haverá várias solenidades; já se pensa numa celebração de ação de graças em Roma, possivelmente com a participação do papa Francisco, em data ser ainda fixada. E, no Brasil, não faltarão manifestações de jubilo e celebrações de ação de graças por este momento, tão longamente esperado. De fato a causa da canonização teve inicio já no século XVII, sendo interrompida e longamente paralisada por várias circunstâncias históricas, como a injusta expulsão dos Jesuítas do Brasil e da posterior supressão da Ordem.

Anchieta é o “apóstolo do Brasil”, assim já proclamado no seu funeral, em 1597. Algumas Regiões e cidades do Brasil foram especialmente marcadas pela sua ação missionária, como Salvador, São Paulo, Santos e todo litoral paulista, Rio de Janeiro, Vitória e o todo o Estado do Espírito Santo, Porto Seguro e o Sul da Bahia…

Sem esquecer, nem desmerecer o imenso trabalho missionário realizado aqui, já no século XVI, também por outros missionários e Ordens religiosas, podemos afirmar, sem medo de errar, que a Igreja e o próprio Brasil devem muito a Anchieta; além de animador de missões já existentes, foi fundador de muitas iniciativas missionárias, educativas e de caridade social. Ele foi um homem de Deus que, apesar de sua saúde frágil, desempenhou uma atividade dinâmica e eficaz, percorrendo distâncias enormes para assistir a um doente, ou para visitar comunidades e missões. Entre os índios no litoral paulista, ele era conhecido como “o padre que voa”, por causa da agilidade com que se deslocava e se fazia presente em lugares diferentes em pouco tempo. No coração de Anchieta ardia o desejo, de levar a luz do Evangelho a todos, consciente de que este é o caminho bom para cada homem.

È providencial que recebamos a notícia da canonização do Padre José de Anchieta neste início de Quaresma. “Convertei-vos e crede no Evangelho” – este apelo, ouvido na quarta feira de cinzas, nos recorda que o Cristo, centro do Evangelho, é a referência, a luz, o caminho, a norma para nossa vida humana e religiosa. Por outro lado, que a santidade é a vocação de todos: “sede santos porque eu, vosso Deus, sou santo”. A santidade de vida consiste na comunhão e na sintonia com Deus e, como consequência, a vida digna deste mundo e no amor, a exemplo de Cristo.

São” José de Anchieta viveu assim. A Igreja o reconhece oficialmente e propõe a todos, que façamos como ele fez. Do nosso jeito, é claro.

 

Artigo publicado em O SÃO PAULO, ed de 06.03.2014

Card. Odilo Pedro Scherer – Arcebispo de São Paulo

Muito papel e tinta já foram gastos para discutir, se a Igreja deve ocupar-se apenas do “espiritual”, ou se também lhe cabe interessar-se pelas questões mais concretas, referentes à vida do homem neste mundo.

Não é meu propósito, nestas linhas, discorrer sobre esta controvérsia que, ao meu ver, está mal colocada: a Igreja de Cristo, neste mundo, é formada de pessoas e instituições concretas, histórica e socialmente situadas, com as quais ela exerce sua missão.

O papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho, 2013), aponta algumas questões, às quais a Igreja precisa dar especial atenção, se quiser cumprir bem a sua missão. Entre outras, destaca que a evangelização tem uma clara dimensão social e não pode contentar-se apenas com a realização de ritos religiosos, sem repercussão na vida social.

Da adesão à fé cristã, quando verdadeira, decorre um compromisso social amplo e a adoração de Deus implica necessariamente no reconhecimento da dignidade de todo ser humano, amado e querido por Deus, bem como no esforço em prol da fraternidade e da justiça. Reconhecer Deus como criador e origem última das criaturas, leva ao respeito por todas elas.

Até pode parecer novidade que o papa Francisco diga, de maneira tão explícita, que a evangelização possui uma dimensão social e o anúncio do Evangelho de Cristo tem inevitáveis implicações comunitárias. No entanto, Francisco retoma conceitos já consolidados no ensino social da Igreja, com a clareza e simplicidade que lhe são próprias, citando documentos de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, dando-lhes novos destaques.

De fato, nada é mais antigo e originário no Cristianismo do que os dois amores inseparáveis – a Deus e ao próximo. Desde os primórdios, os cristãos aprenderam que “a fé sem as obras é morta em si mesma”; e que as obras da fé incluem sempre a prática do amor fraterno, a atenção aos pobres, doentes e desvalidos, sem exclusão de ninguém. Paulo, ao se confrontar com os outros apóstolos, para verificar se a sua pregação estava em sintonia com a deles, recebeu apenas esta recomendação: que não descuidasse os pobres.

Não se trata apenas de levar assistência e socorro, sem dúvida indispensáveis para aliviar necessidades pontuais e imediatas dos pobres, mas de “ouvir o clamor dos pobres e socorrê-los,” de para promover a sua inclusão social. Nem é missão reservada apenas a algumas pessoas: é de todos os membros da Igreja, atuantes nas mais diversas áreas de suas competências profissionais e responsabilidades sociais. O Papa convida a ir além de alguns atos esporádicos de generosidade e a formar uma nova mentalidade, uma cultura, superando o excessivo individualismo para pensar e agir solidariamente, tendo sempre presente o horizonte da comunidade e da grande família humana (cf. n. 188s).

Precisamos crescer em solidariedade”, ensina Francisco, também no que diz respeito às relações entre os povos, onde a exacerbada defesa dos direitos individuais, ou das vantagens dos povos mais ricos, passa por cima do direito mais elementar à vida digna de populações e nações inteiras, que continuam a viver na miséria e sem chances de sair dela. De maneira clara e corajosa, Francisco retoma o conceito da “destinação universal dos bens deste mundo” para todos os seus habitantes: “respeitando a independência e a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de toda e para toda a humanidade”.

Usando palavras de seu predecessor, Paulo VI (Octogesima adveniens, 23,1971), Francisco apela para os povos mais ricos, tocando numa questão melindrosa: ”é preciso repetir que os mais favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para colocar, com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros” (n. 190).

A opção preferencial da Igreja pelos pobres não tem motivação ideológica, nem implica na exclusão dos que não são pobres: ela tem sua origem e inspiração no exemplo e nas palavras do próprio Jesus e deverá ser traduzida em ações concretas de solidariedade para com os doentes, os pobres e todos os deserdados dos bens deste mundo; mas também na promoção da justiça social e no cuidado de todo ser humano despojado de sua dignidade. A Igreja, acaso, poderia deixar de fazer isso e de convidar todos a fazer o mesmo, como caminho para o bem comum e a paz?

A evangelização seria incompleta, se não tomasse em consideração a constante interpelação recíproca constante entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social (n. 181). Francisco adverte aqueles que, dentro ou fora da Igreja, pensam, deva a religião ficar reservada apenas aos espaços da vida privada: “ninguém pode exigir de nós que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre acontecimentos que interessam aos cidadãos” (n. 183).

Bem, e por qual motivo os católicos não fazem isso? Não é que falte quem já o faz; mas, é verdade, temos muito pela frente! Entre o “dever fazer” e o “fazer” vai uma grande distância. Nada é automático na condição humana, nem também na vida dos crentes em Deus; o Cristianismo apela, por princípio, à consciência e à liberdade humana; graça divina e autonomia do homem são dois pólos que precisam se encontrar.

A palavra do papa Francisco, dirigida aos membros da Igreja, longe de ser triunfalista, é um chamado à realidade e à atitude consciente; a “alegria do Evangelho” é um bem para a comunidade humana inteira, não podendo ficar retida no coração dos fiéis: ela é “boa nova” para todos. Para os pobres, em primeiro lugar.

Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 08.02.2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo

Muito interessante a mensagem do 3º domingo do Tempo Comum, celebrado no dia 26 de janeiro. Fala do início da missão pública de Jesus, depois da prisão de João Batista (cf Mt 4,12-23).

Jesus deixa Nazaré, onde passou a fase de sua vida oculta, e fixa morada em Cafarnaum, iniciando sua missão pública junto do mar da Galileia. Vai anunciando que o reino de Deus está perto e chama as pessoas a acolherem esta boa nova e a se voltarem para o reino de Deus. Logo vai se juntando muita gente ao seu redor; trazem-lhe doentes, pessoas com problemas de todos os tipos, que Jesus atende e cura. E vai chamando discípulos a seguirem atrás dele.

Chama a atenção o fato de Jesus não começar a pregar em Jerusalém, no templo, no ”centro”… Ele começa pela periferia, em regiões tidas até mesmo como “lugar de trevas”, gente meio pagã, idólatra… A “terra de Zabulon”, na Galileia, ainda hoje faz divisa com o sul do Líbano e com a Síria; a “terra de Neftali”, do outro lado do Jordão, ia para dentro do Líbano e da Síria atuais. Essas regiões, meio pagãs e contagiadas pela idolatria dos povos vizinhos, no tempo de Jesus, constituíam a “Galileia dos gentios”.

É lá que Jesus faz ressoar o bom anúncio da proximidade do reino de Deus. Mateus vê, assim, realizada a profecia de Isaías, que falava da luz que resplandece para aqueles que viviam nas trevas e na “região escura da morte” (cf Is 9,1). É Jesus a luz de Deus que resplandece e ilumina os homens esquecidos e até desprezados, fazendo-os reviver e ter esperança. Não foram esquecidos por Deus, que lhes enviou seu Filho.

A realização dessa profecia continua ao longo da história através da vida e da atuação da Igreja. Também isto aparece já no início da pregação pública de Jesus, que chama apóstolos para o seguirem e para serem, depois, enviados em missão, com a sua própria autoridade. Em vários momentos, Jesus enviou os discípulos em missão, para anunciarem a Boa Nova do reino de Deus; finalmente, após a ressurreição, enviou os apóstolos, na força do Espírito Santo, pata continuarem a sua missão “até o fim dos tempos”.

O papa Francisco, em nossos dias, tem incentivado a Igreja para ir às periferias da humanidade. Talvez ficamos muito sossegados, cuidando mais de quem já está no “centro” e cujo cuidado absorve todas as nossas energias e todo o nosso tempo. A Igreja é enviada, não apenas às periferias geográficas, mas também sociais, econômicas, políticas e mesmo religiosas. As periferias”, podem estar mesmo no centro de nossa cidade; elas não estão longe de nós; basta abrir os olhos.

O Evangelho é luz para todos, mas onde as pessoas já acham que vivem “na luz”, ele é menos bem acolhido e tem menos fruto. A boa nova do reino de Deus, dirigida ao povo relegado às periferias, redime, resgata e salva essas pessoas, fazendo-as viver e dando-lhes esperança. Os fieis em Cristo, se desejam ser fieis a ele, precisa imitar o seu exemplo e fazer como ele.

De maneira significativa, neste mesmo domingo, foi feito o envio missionário de três religiosas do Regional Sul 1 para a diocese de Alto Solimões, no Regional Norte 1, na extrema periferia noroeste do Brasil; e o Pe. Fabiano, da arquidiocese de São Paulo, como missionário “fidei donum”, para a diocese de Castanhal, no Pará. Que Deus nos ajude a sermos uma Igreja verdadeiramente missionária, disposta a levar a Boa Nova do reino de Deus às terras de Zabulon e Neftali dos nossos dias…

Publicado em O SÃO PAULO, ed. de 28.01.2014

Card. Odilo P. Scherer – Arcebispo de São Paulo