Segunda Catequese da Teologia do Corpo | Na primeira narrativa da criação encontra-se a definição objetiva do homem
1. Na quarta-feira passada iniciamos o ciclo de reflexões sobre a resposta dada por Cristo Senhor aos seus interlocutores acerca da pergunta sobre a unidade e indissolubilidade do matrimônio. Os interlocutores fariseus, como recordamos, apelaram para a lei de Moisés; Cristo, pelo contrário, referiu-se ao “princípio”, citando as palavras do Gênesis.
O “princípio”, neste caso, diz respeito àquilo de que trata uma das primeiras páginas do Livro do Gênesis. Se queremos fazer uma análise desta realidade, devemos sem dúvida referir-nos primeiramente ao texto. De fato, as palavras pronunciadas por Cristo na conversa com os fariseus, que nos conservaram o capítulo 19 de Mateus e o capítulo 10 de Marcos, constituem uma passagem que por sua vez se enquadra num contexto bem definido, sem o qual não podem ser nem entendidas nem exatamente interpretadas. Este contexto é dado pelas palavras: Não lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher…?i, e faz referência à chamada primeira narrativa da criação do homem, inserida no ciclo dos sete dias da criação do mundoii. Pelo contrário, o contexto mais próximo das outras palavras de Cristo, tiradas do Gên. 2, 24, é a chamada segunda narrativa da criação do homemiii, mas indiretamente é todo o terceiro capítulo do Gênesis. A segunda narrativa da criação do homem forma unidade conceitual e estilística com a descrição da inocência original, da felicidade do homem e também da sua primeira queda. Dada a especificidade do conteúdo expresso nas palavras de Cristo, tomadas do Gênesis 2, 24, poder-se-ia também incluir no contexto pelo menos a primeira frase do capítulo quarto do Gênesis, que trata da concepção e do nascimento do homem por parte dos pais terrestres. Assim pretendemos fazer na presente análise.
2. Do ponto de vista da crítica bíblica, urge recordar que a primeira narrativa da criação do homem é cronologicamente posterior à segunda. A origem desta última é muito mais remota. Este texto mais antigo define-se como “javista”, porque para nomear a Deus serve-se do termo “Javé”. É difícil não se ficar impressionado com que a imagem de Deus nele apresentada encerre traços antropomórficos bastante marcados (entre outros, lemos nele que… o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vidaiv). Em confronto com esta descrição, a primeira narrativa, isto é, exatamente a considerada cronologicamente como mais recente, é muito mais amadurecida quer no que diz respeito à imagem de Deus, quer na formulação das verdades essenciais sobre o homem. Provém da tradição sacerdotal e ao mesmo tempo “eloísta”: de “Eloim”, termo por ela usado para denominar Deus.
3. Dado que nesta narrativa a criação do ser inteligente como homem e mulher, a que se refere Jesus na sua resposta segundo Mt 19, está inserida no ritmo dos sete dias da criação do mundo, poder-se-lhe-ia atribuir sobretudo caráter cosmológico: o homem é criado na terra juntamente com o mundo visível. Ao mesmo tempo, porém, o Criador ordena-lhe que subjugue e domine a terrav: ele é portanto colocado acima do mundo. Embora o homem esteja tão intimamente ligado ao mundo visível, a narrativa bíblica não fala todavia da sua semelhança com o resto das criaturas, mas somente com Deus (Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus…vi). No ciclo dos sete dias da criação manifesta-se evidentemente uma gradualidade nítida1; o homem, pelo contrário, não é criado segundo uma sucessão natural, mas o Criador parece deter-se antes de o chamar à existência, como se tornasse a entrar em si mesmo, para tomar decisão: Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança…vii.
4. O nível daquela primeira narrativa da criação do homem, embora cronologicamente posterior, é sobretudo de caráter teológico. Indica-o principalmente a definição do homem baseada na sua relação com Deus (“à imagem de Deus o criou”), o que encerra ao mesmo tempo a afirmação da impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao “mundo”. Já à luz das primeiras frases da Bíblia, não pode o homem ser compreendido, nem explicado até ao fundo, com as categorias deduzidas do “mundo”, isto é, do conjunto visível dos corpos. Apesar de também o homem ser corpo. Gn 1, 27 verifica que esta verdade essencial acerca do homem se refere tanto ao homem como à mulher: Deus criou o homem à sua imagem… criou-os homem e mulher2. É preciso reconhecer que a primeira narrativa é concisa, livre de qualquer vestígio de subjetivismo: contém só o fato objetivo e define a realidade objetiva, quer ao falar da criação humana, do homem e da mulher, à imagem de Deus, quer ao acrescentar pouco depois as palavras da primeira bênção: Abençoando-os, Deus disse-lhes: “crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra”viii.
5. A primeira narrativa da criação do homem, que, segundo verificamos, é de índole teológica, encerra em si abundante conteúdo metafísico. Não se esqueça que precisamente este texto do Livro do Gênesis se tornou a fonte das inspirações mais profundas para os pensadores que têm procurado compreender o “ser” e o “existir”. (Talvez só o capítulo terceiro do Livro do Êxodo se possa comparar ao presente texto)3. Não obstante algumas expressões particularizadas e plásticas do trecho, o homem é nele definido primeiramente nas dimensões do ser e do existir (“esse“). É definido de modo mais metafísico que físico. Ao mistério da sua criação (“sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra”), a perspectiva daquele suceder-se no mundo e no tempo, daquele “fieri” que está necessariamente ligado à situação metafísica da criação: do ser contingente (contingens). Precisamente nesse contexto metafísico da descrição de Gn 1, é necessário entender a entidade do bem, isto é, o aspecto do valor. De fato, este aspecto repete-se no ritmo de quase todos os dias da criação do homem: Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boaix. Por este motivo é lícito dizer com certeza que o primeiro capítulo do Gênesis formou um ponto inexpugnável de referência e a base sólida para uma metafísica e também para uma antropologia e uma ética, segundo a qual “ens et bonum convertuntur“. Sem dúvida, tudo isto tem significado próprio, também para a teologia e sobretudo para a teologia do corpo.
6. Nesta altura interrompemos as nossas considerações. Daqui a uma semana ocupar-nos-emos da segunda narrativa da criação, isto é, daquilo que, segundo os biblistas, é cronologicamente mais antigo. A expressão “teologia do corpo”, usada recentemente, merece explicação mais exata, mas deixamo-la para outro encontro. Devemos primeiro procurar aprofundar aquela passagem do Livro do Gênesis, a que se referiu Cristo.
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(1) Falando da matéria não vivificada, o autor bíblico usa diferentes predicados, como «separou», «chamou», «fez» e «pôs». Pelo contrário, falando dos seres dotados de vida, usa os termos «criou» e «abençoou». Deus ordena-lhes: «Sede fecundos e multiplicai-vos». Esta ordem refere-se tanto aos animais como ao homem, indicando que a corporalidade lhes é comum (cfr. Gén. 1, 22.28).
Todavia a criação do homem distingue-se essencialmente, na descrição bíblica, das obras precedentes de Deus. Não só é precedida por uma introdução solene, como se se tratasse duma deliberação de Deus antes deste acto importante, mas sobretudo é posta em relevo a excepcional dignidade do homem pela «semelhança» com Deus, de quem é a imagem.
Criando a matéria não vivificada. Deus «separava»; aos animais ordena que sejam fecundos e se multipliquem, mas a diferença de sexo é sublinhada apenas a respeito do homem («macho e fêmea os criou») abençoando ao mesmo tempo a fecundidade deles, isto é, o vínculo das pessoas (Gén. 1, 27-28).
(2) O texto original diz: «Deus criou o homem (ha-adam — substantivo coletivo: a «humanidade»?); à sua semelhança; à imagem de Deus o criou; macho (zakar – masculino) e fêmea (unegebah – feminino) os criou» (Gén. 1, 27).
(3) «Haec subtimis ventas»: «Eu sou Aquele que sou» (Ex. 3, 14) constitui objecto de reflexão para muitos filósofos, a começar por Santo Agostinho, que julgava ter Platão conhecido este texto, tão próximo ele lhe parecia das concepções do filósofo grego. A doutrina augustiniana da divina «essentialitas» exerceu, por meio de Santo Anselmo, influxo profundo na teologia de Ricardo de S. Vítor, de Alexandre d’Halès e de S. Boaventura.
«Pour passer de cette interprétation philosophique du texte de 1’Exode à celle qu’allait proposer saint Thomas il fallait nécessairement franchir Ia distance qui separe ‘l’être de 1’essence’ de ‘l’être de 1’existence’. Les preuves thomistes de 1’existence de Dieu 1’ont franchie».
Diversa é a posição do Mestre Eckart, que, baseado neste texto, atribui a Deus a «puritas essendi»: «est aliquid altius ente …»; (cfr. E. Gilson, Le Thomisme, Paris 1944, Vrin, págs. 122-127; E. Gilson, History of Christian Philosophy in the Middle Ages, London 1955, Sheed and Ward, pág. 810).
João Paulo II – Audiência Geral – Quarta-feira, 12 de Setembro de 1979
Fonte: vatican.va