20120329-122637.jpg“O belo é o esplendor do verdadeiro”, disse Platão. Aqui está a origem de toda a reflexão sobre a beleza desde a Antiguidade grega até nossos dias. Ninguém ainda superou Platão. É dele o pensamento original que uniu em nós uma só palavra, kalokagathia – belo e bom – as duas vertentes ou facetas da mesma experiência humana. Se Deus é amor como proclama poeticamente o evangelista João em sua Primeira Epistola, podemos dizer que este amor se expressa sempre articulando o bem, o belo e o verdadeiro. Deve haver uma simbiose entre estes termos e na experiência que fazemos deles em nossa vida quotidiana.
Alguns criticam esta posição como idealista e que não corresponderia ao real e aos conflitos concretos da vida. Viver e não ter vergonha de ser feliz, cantada pelo poeta Gonzaguinha, não parece ser tão natural e simbiótico. Criar é exprimir nosso eu pessoal como expressão do bem e do belo que nos habitam interiormente. Sabemos que precisamos ver e contemplar para que a nossa palavra diga o que emerge de nossos corações. São dois exercícios internos distintos. Um será realizado com os olhos físicos e a luz. O outro será algo muito mais profundo e vulcânico. Capaz de extasiar e mudar nossa vida completamente. Não há esquecimento para algo contemplado com os olhos do coração. Mas os humanos parecem desterrados em um vale de lagrimas onde vivem angustiados por uma profunda nostalgia que sonha com um paraíso ou Éden perdido.
Queremos voltar a identificar o belo e o bom. Queremos que seja verdade e que vivamos o tempo da criação primigênia. Sabemos que o próprio do bem é o atrair-nos para o verdadeiro com nosso apetite voraz pelo infinito e felicidade. Sabemos também que o próprio do belo é o seduzir e ser seduzido, pois desejamos ser visitados pela graça e pelo êxtase. Somos simultaneamente seres de desejo e de paizão. Seres que buscam o infinito e a transcendência e seres que querem ser visitados pelo Outro. Seres perfectíveis, mas repletos de imperfeições. Seres de beleza mergulhados em tantas feiúras e matéria informe. Somos como flores de lótus em um imenso lodaçal. Temos saudades da hora em que tudo se fez pelo canto mavioso do Amado. Assim, o livro do Genesis falará daquele dia único, especial e fundamental: o dia da criação. Não é um dia como outro qualquer, como dito pelos teólogos da época patrística.
Queremos novamente ouvir aquela frase bíblica: “E Deus viu que tudo era Belo e Bom” . Como relata o teólogo Evdokimov este é para nós hoje novamente o dia que se manifesta como Alfa que já carrega em si mesmo o Omega .
Ficar perto da luz e iluminar-se com ela, eis a missão e meta de nossa viagem galáctica, histórica, pessoal e coletiva. Estar na luz é comungar da Luz divina e assim manifestar a beleza querida por Deus e contemplar a cada dia e na esperança a beleza de Deus. Por essa razão, o ultimo livro na edição da Bíblia, ao afirmar a esperança, diante dos sofrimentos e das injustiças, proclama com audácia que “a noite não existirá, e ninguém mais necessitará da luz de lâmpadas nem da luz do sol, porque o Senhor Deus os iluminará e eles reinarão pelos séculos dos séculos” .
Falar de beleza e vivê-la em nossa vida é bem mais que cultuar ou vislumbrar algo de bonito ou lindo. Reconhecer que algo nos agrada ao contemplar é só o primeiro momento de algo muito mais profundo e misterioso. Todo ser, toda criatura, tudo o que existe de belo à medida que alcança a perfeição de sua natureza ou dela se acerca. O belo sempre foi associado ao que é proporcional ou equilibrado. O belo sempre se manifestou nas culturas como estando coligado à luz ou claridade. O belo sempre foi expresso como esplendor do verdadeiro, realizando a síntese difícil entre verdade, bem e beleza.
Nosso desafio hoje é o de unir o bem que se faz ética e o belo que se faz estética como um caleidoscópio de emoções, experiências, conhecimento e utopias. Para conseguir atingir essa meta humana, é preciso refazer o caminho teológico e filosófico como fez magistralmente Hans Urs von Balthasar ao realizar magistral obra em que mostra que o abandono progressivo de desenvolver a teologia cristã à luz do terceiro transcendental, isto é, completar a visão do verum, bonun, mediante o pulchrum, empobreceu o pensamento cristão .
Experimentamos a arte como um dom e dádiva especial de Deus para cada um nós sem quaisquer exclusões. Verificamos que há uma busca do belo, presente em cada ser humano, quando este tem sede de eternidade, felicidade, serenidade e imortalidade. Não é errôneo dizer que as obras de arte expressam Deus. Há pinturas que são verdadeiros portais do divino. Há musicas que abrem para o infinito, como Mozart, Beethoven. Há esculturas que quase falam como o Moisés de Michelangelo. A beleza nos faz melhores. Apesar de sermos seres incompletos. A beleza nos incomoda, pois incomodou previamente o artista . O artista é alguém incitado, conclamado, instigado pelo belo. A tarefa que recebeu é árdua. Como uma cruz pesada. Ele deve saber que todos os seus atos, sentimentos, pensamentos não são fundamentalmente a matéria imponderável de onde surgirão suas obras. Ele deve saber que não é livre, durante toda a sua vida como artista, e que só o será de fato pela arte.
Chegamos a algumas perguntas: A beleza antiga cura feridas modernas? A beleza conduziria a Deus? Existe algum caminho privilegiado que possa nos conduzir a Deus? A beleza poderia ser esta via?
O teólogo Clodovis Boff cita algumas destas linguagens expressivas ou vias de expressão da fé: a poesia, a musica, o canto, a pintura, o teatro, a dança, as narrativas, as máximas, a simbologia e o humorismo. A lista valoriza todo o mundo da arte como via pulchritudinis “caminhos da beleza” . Lembra que a linguagem plástica privilegiada sempre o é a da liturgia. E diz que este caminho é meio de expressão e dialeticamente fonte de fé e de reflexão teológica. Portanto, segundo o autor, são lugares teológicos. Diz ele que o teólogo sempre deve estar pronto a dizer: “Que teologia há por trás disto: deste canto ou desta pintura? Tematizará então esta teologia implícita, enriquecendo-a, em seguida, pelo confronto com a tradição da fé e os desafios da historia” .
Aqui podemos lembrar-nos do texto Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, promulgado em 4 de dezembro de 1963, pelo Concilio Vaticano II, que ao referir-se às belas artes diz que estas possuem dignidade fundamental . E ainda afirma que as belas artes são o reflexo da beleza infinita de Deus . Recomenda os padres conciliares que os padres e religiosos sejam instruídos e educados na história da arte para que apreciem e conservem as obras de arte e possam manter um diálogo frutífero com os artistas (cf. SC, n. 129).
Pode-se afirmar a beleza como um velho e novo caminho para encontrar Deus nos dias atuais. Mas precisa-se ficar atento, pois há uma ambigüidade na beleza. “Deus não é o único que se veste de beleza, o mal o imita e faz que a beleza seja profundamente ambígua” . Podemos unir-mo-nos a Fiodor Mikhailovick Dosteievsks quando proclama uma profunda convicção de que a beleza salvará o mundo. Mas qual beleza? Pois sabemos que a beleza é um enigma que fascina e também faz perecer. Se a beleza possui um valor salvífico, devemos saber que, se a verdade é sempre bela, a beleza nem sempre é verdadeira. É bom lembrar que o Judaísmo e o Cristianismo falam do mal associado ao pecado do orgulho de Lúcifer por conta de formosura e beleza cintilantes, pois “teu coração se exaltou e corrompeste tua sabedoria por causa do teu esplendor. Assim te atirei por terra e fiz de ti um espetáculo à vista dos reis” .
A beleza é real, mas frágil. A beleza também precisa ser salva. Quem poderia fazê-lo? Para o novelista e literato Dosteievsks, só quem pode fazê-lo bem é o Homem Santo. Salvar a arte e a beleza será tarefa nevrálgica e santa para que haja sentido no mundo e na vida humana. Verdadeira tarefa salutar e terapêutica da qual ninguém pode se eximir. Sem este sal que salgará a terra não haveria nada mais a fazer sobre ela. A beleza introduz Deus na alma humana tal como a “sarça ardente que introduz ali suas raízes” . A beleza que salva o mundo está em Deus e na sua presença no coração e na vida da humanidade.

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