Ao grau ultimo da síntese, aquele da Bíblia, o verdadeiro e o bem se oferecem à contemplação, a vivência simbiótica assinala a integridade do ser e faz surgir à beleza, como bem diz Kierkegaard em seu livro intitulado La note de 1852 [1].
Os sacrificados, os mártires, estes amigos feridos do Esposo que se oferecem em espetáculo aos anjos e aos homens, representam os acordes fundamentais o imenso canto da salvação. Espigas colhidas, o Senhor as repõe nas plantações do Seu Reino. A tradição vê nesses a conformação ao Cristo na Beleza. Nicola Cabasilas, o grande liturgista do século XIV, diz “aqueles que souberam amar alem de tudo a Suma Beleza” [2], semente do divino, “ágape radical no coração” [3].
Criando o mundo do nada, o Divino Criador compõe a sua Sinfonia dos seis dias, o Hexámeron, e a cada dos seus atos viu que era belo. O texto sagrado grego do relato bíblico diz belo e não bom; o termo hebraico significa uma e a outra coisa juntas. Da outra parte o verbo criar é conjugado em hebraico segundo o modo completo: o mundo foi criado, é criado e será criado até a sua plenitude. Saindo das mãos de Deus, o germe é já belo, mas aperto à evolução, a historia quanto mais movimentada e trágica do sinergismo do agir divino e do agir humano. Segundo Maximo o Confessor, o cumprimento da primeira beleza na Beleza perfeita se põe ao fim e recebe o nome de Reino [4]
Aqui a tradição causa uma prefixação importante. Um grande homem espiritual do IV século, Evagrio comentando a variante do Pater no evangelho de Lucas onde o posto do Reino se lê venha o teu Espírito, diz: “O Reino de Deus é o Espírito Santo: nós o pedimos ao Pai que faça descer sobre nós” [5], de acordo com a tradição, Evagrio identifica assim o Reino e o Espírito Santo. Portanto, se o Reino contemplado é a Beleza, a terceira pessoa da Trindade se revela Espírito da Beleza. O Espírito Santo é a perfeição da Beleza, Ele comunica o esplendor da Santidade.
Os atributos notados do Espírito são a Vida e a Luz. A Luz, antes de tudo, é potência de revelação, e por isso o Deus revelatus se chama Deus-Luz. A sua potência “ilumina cada homem” (Jo 1,9) e segundo São Simão “transforma em luz aqueles que são iluminados” [6]. Mais ainda, ela se põe como fonte da todo conhecimento: “À tua luz vemos a luz” (Sal 35,10) [7]. Existem pontos de vista sempre parciais, e por isso são deformantes, e existe o olhar pleno que faz do homem, segundo a expressão de São Macário [8] um olho único e imenso permeado da luz divina.
Sobre o plano ótico, o olho não percebe os objetos ma a luz refletida dos objetos. O objeto é visível somente porque a luz o faz luminoso. Aquilo que se vê é a luz que se une ao objeto, que em certo modo o absorve e toma a sua forma, o retrata e o revela. A inteiração misteriosa do carbono e da luz do diamante, a beleza. Segundo uma antiga crença popular, o raio de luz que penetra a noite de uma ostra gera a perola [9]. O espaço não existe se não pela luz, a qual faz a matriz de cada vida. É neste sentido que a vida e a luz se identificam. A luz faz vivo cada ser, fazendo aquele que é presente, aquele que vê o outro e que é visto por outro, aquele que vive com e para o outro, existindo um no outro.
Por outro lado, o inferno, o Ade grego e ao Sheol dos hebreus, indica aquele lugar denso de trevas onde a solidão reduz o ser à extrema indigência do solipsismo demoníaco, onde nenhuma visão se encontra com outra.
Segundo o relato bíblico da criação do mundo, no inicio “foi uma grande tarde e uma manha, e este foi o dia”. O Hexámeron não conhece noite. As trevas e a noite não são criadas por Deus; para o momento a noite não é mais que o sinal do inexistente, o nada abstrato, separado pela sua natureza do ser. A manha e a tarde assinala a sucessão dos eventos, designam a progressão criadora e forma o dia, dimensão da luz pura. O seu contrário, a noite, não é ainda a potência efetiva das trevas; a noite no sentido joanino aparece somente na queda.
A noite não é a simples ausência de luz. Os psiquiatras sabem que cada passividade aparente esconde uma silenciosa e ativa resistência. A treva da qual se fala é uma fuga desesperada do interno de si mesma, porque como impotente é arrastada para a Luz: para esconder-se se cobre de escuridão culposa, manifestando uma postura demoníaca e consciente da negação e rejeição.
Na ocasião da Ceia do Senhor, o Cenáculo é inundado de luz porque Cristo está no meio dos Apóstolos. É neste momento que Satanás entra em Judas e deste momento, ele não pode mais ficar no circulo de luz: ele sai com pressa, e João sóbrio nos detalhes observa: era noite. As trevas da noite envolvem Judas e escondem o terrível segredo da sua comunhão com Satanás (Jo 13).
O primeiro dia da criação observa os Padres, não é primeiro, mas o único. É o alfa que já leva chama o Omega, o oitavo dia do acordo final, o pleroma. Este primeiro dia é o canto jubiloso do Cântico dos Cânticos de próprio Deus, a fonte fulgurante do “faça-se a luz”. Esta luz não é um elemento ótico, que aparecerá no quarto dia com o sol astronômico. A luz inicial no sentido absoluto é a revelação mais envolvente do Rosto de Deus. Faça-se a luz, significa para o mundo em potência: faça-se a Revelação e, portanto venha o Revelador, venha o Espírito Santo! O Pai pronuncia a sua palavra e o Espírito a manifesta, Ele é a Luz da Palavra. A Palavra revela Deus como o Tu absoluto e suscita imediatamente aquele que a escuta e a contempla, a segunda luz nascida da Luz e colocada como outro eu e espelho na luz-revelação-comunhão.
O circulo da Revelação fechou-se sobre a diferenciação e ao mesmo tempo sobre a identidade perfeita de todos os elementos. A primeira palavra da Bíblia faça-se a luz é também a ultima, faça-se a beleza, Alfa e Omega, principio e fim. O homem deve se transforma todo em doxologia vivente, da estética ao religioso.
[1] KIERKEGAARD Soren, La note de 1852, Bohlim 1941, p.251: “O pássaro sobre o ramo, o lirio no campo, o veado na floresta, o peixe no mar, inumeráveis homens contentes proclamam a alegria: Deus é amor! Mas por baixo e como suporte de todas estas vozes, como o baixo mugir abaixo os claros sopranos, si ouve, de profundis, a voz dos sacrificados: Deus é Amor”.
[2] BORODINE M. Lot, N. Cabasilas, Paris, p. 156.
[3] CRISOSTOMO João, cit. in M. Lot Borodine, op.cit., p.155.
[4] MAXIMO, Mystagogia, PG 91, 701C.
[5] HAUSHERR I. Les leçons d`un contemplative. Le Traité d`oraison d`Evagre le Pontique, Paris 1960, p. 83.
[6] SIMÃO o Novo Teólogo, Hymne à l`amour divin in La Vie Spirituale, 27 (1931), p. 201.
[7] A redação dos Evangelhos situa-se depois de Pentencostes.
[8] MACARIO, Homilia 1,2, p. 34, 450B-451 A.
[9] Para Santo Efrém a perola evoca o batismo de água e de fogo porque essa é o fruto da união da água e do fogo-luz. São Macário fala de perola celeste, imagem da Luz divina, e na parábola evangélica essa é figura do Reino.