Amados irmãos e irmãs,

Queridos jovens!
A mesma emoção se apodera de nós em cada ano, no Domingo de Ramos, quando subimos na companhia de Jesus o monte para o santuário, quando O acompanhamos pelo caminho que leva para o alto. Neste dia, ao longo dos séculos por toda a face da terra, jovens e pessoas de todas a idades aclamam-n’O gritando: “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!”.

Mas, quando nos integramos em tal procissão – na multidão daqueles que subiam com Jesus a Jerusalém e O aclamavam como rei de Israel –, verdadeiramente o que é que fazemos? É algo mais do que uma cerimônia, do que um louvável costume? Porventura terá a ver com a verdadeira realidade da nossa vida, do nosso mundo? Para encontrar a resposta, temos antes de mais nada de esclarecer o que é que o próprio Jesus realmente quis e fez. Depois da profissão de fé que Pedro fizera em Cesareia de Filipe, no extremo norte da Terra Santa, Jesus encaminhara-Se como peregrino na direção de Jerusalém para as festividades da Páscoa. Caminha para o templo na Cidade Santa, para aquele lugar que, de modo particular, garantia a Israel que Deus estava próximo do seu povo. Caminha para a festa comunitária da Páscoa, memorial da libertação do Egito e sinal da esperança na libertação definitiva. Jesus sabe que O espera uma Páscoa nova, e que Ele mesmo tomará o lugar dos cordeiros imolados, oferecendo-Se a Si mesmo na Cruz. Sabe que, nos dons misteriosos do pão e do vinho, dar-Se-á para sempre aos seus, abrir-lhes-á a porta para um novo caminho de libertação, para a comunhão com o Deus vivo. Ele caminha para a altura da Cruz, para o momento do amor que se dá. O termo último da sua peregrinação é a altura do próprio Deus, até à qual Ele quer elevar o ser humano.

Assim, a nossa procissão de hoje quer ser imagem de algo mais profundo, imagem do fato que nos encaminhamos em peregrinação, juntamente com Jesus, pelo caminho alto que leva ao Deus vivo. É desta subida que se trata: tal é o caminho, a que Jesus nos convida. Mas, nesta subida, como podemos andar no mesmo passo que Ele? Porventura não ultrapassa as nossas forças? Sim, está acima das nossas próprias possibilidades. Desde sempre – e hoje ainda mais – os homens nutriram o desejo de “ser como Deus”; de alcançar, eles mesmos, a altura de Deus. Em todas as invenções do espírito humano, em última análise, procura-se conseguir asas para poder elevar-se à altura do Ser divino, para se tornar independentes, totalmente livres, como o é Deus. A humanidade pôde realizar tantas coisas: somos capazes de voar; podemos ver-nos uns aos outros, ouvir e falar entre nós dum extremo do mundo para o outro. E todavia a força de gravidade que nos puxa para baixo é poderosa. A par das nossas capacidades, não cresceu apenas o bem; cresceram também as possibilidades do mal, que se levantam como tempestades ameaçadoras sobre a história. E perduram também os nossos limites: basta pensar nas catástrofes que, nestes meses, afligiram e continuam a afligir a humanidade.

Os Padres disseram que o homem está colocado no ponto de intersecção de dois campos de gravidade. Temos, por um lado, a força de gravidade que puxa para baixo: para o egoísmo, para a mentira e para o mal; a gravidade que nos rebaixa e afasta da altura de Deus. Por outro lado, há a força de gravidade do amor de Deus: sabermo-nos amados por Deus e a resposta do nosso amor puxam-nos para o alto. O homem encontra-se no meio desta dupla força de gravidade, e tudo depende de conseguir livrar-se do campo de gravidade do mal e ficar livre para se deixar atrair totalmente pela força de gravidade de Deus, que nos torna verdadeiros, nos eleva, nos dá a verdadeira liberdade.

Depois da Liturgia da Palavra e logo no início da Oração Eucarística, durante a qual o Senhor entra no meio de nós, a Igreja dirige-nos este convite: «Sursum corda – corações ao alto!». O coração, segundo a concepção bíblica e na visão dos Padres, é aquele centro do homem onde se unem o intelecto, a vontade e o sentimento, o corpo e a alma; é aquele centro, onde o espírito se torna corpo e o corpo se torna espírito, onde vontade, sentimento e intelecto se unem no conhecimento de Deus e no amor a Ele. Este «coração» deve ser elevado. Mas, também aqui, sozinhos somos demasiado frágeis para elevar o nosso coração até à altura de Deus; não somos capazes disso. É precisamente a soberba de o podermos fazer sozinhos que nos puxa para baixo e afasta de Deus. O próprio Deus tem de puxar-nos para o alto; e foi isto que Cristo começou a fazer na Cruz. Desceu até à humilhação extrema da existência humana, a fim de nos puxar para o alto rumo a Ele, rumo ao Deus vivo. Jesus humilhou-Se: diz hoje a segunda leitura. Só assim podia ser superada a nossa soberba: a humildade de Deus é a forma extrema do seu amor, e este amor humilde atrai para o alto.

O salmo processional 24, que a Igreja nos propõe como «cântico de subida» para a liturgia de hoje, indica alguns elementos concretos, que pertencem à nossa subida e sem os quais não podemos ser elevados para o alto: as mãos inocentes, o coração puro, a rejeição da mentira, a procura do rosto de Deus. As grandes conquistas da técnica só nos tornam livres e são elementos de progresso da humanidade, se forem acompanhadas por estas atitudes: se as nossas mãos se tornarem inocentes e o coração puro, se permanecermos à procura da verdade, à procura do próprio Deus e nos deixarmos tocar e interpelar pelo seu amor. Mas todos estes elementos da subida só serão úteis, se reconhecermos com humildade que devemos ser puxados para o alto, se abandonarmos a soberba de querermos, nós mesmos, fazer-nos Deus. Temos necessidade d’Ele: Deus puxa-nos para o alto; permanecer apoiados pelas suas mãos – isto é, na fé – dá-nos a orientação justa e a força interior que nos eleva para o alto. Temos necessidade da humildade da fé, que procura o rosto de Deus e se entrega à verdade do seu amor.

A questão de saber como pode o homem chegar ao alto, tornar-se plenamente ele próprio e verdadeiramente semelhante a Deus, desde sempre ocupou a humanidade. Foi objeto de apaixonada discussão pelos filósofos platônicos dos séculos terceiro e quarto. A sua pergunta central era esta: como encontrar meios de purificação, pelos quais o homem pudesse libertar-se do gravoso peso que o puxa para baixo e elevar-se à altura do seu verdadeiro ser, à altura da divindade. Santo Agostinho, na sua busca do reto caminho, durante um certo período procurou apoio em tais filosofias. Mas, no fim, teve de reconhecer que a sua resposta não era suficiente, que ele, com tais métodos, não chegaria verdadeiramente a Deus. Disse aos seus representantes: Reconhecei, pois, que não basta a força do homem e de todas as suas purificações para o levar verdadeiramente à altura do divino, à altura que lhe é condigna. E disse que teria desesperado de si mesmo e da existência humana, se não tivesse encontrado Aquele que faz o que nós mesmos não podemos fazer, Aquele que nos eleva à altura de Deus, apesar da nossa miséria: Jesus Cristo, que desceu de junto de Deus até nós e, no seu amor crucificado, nos toma pela mão e nos conduz ao alto.

Com o Senhor, caminhamos, peregrinos, para o alto. Andamos à procura do coração puro e das mãos inocentes, andamos à procura da verdade, procuramos o rosto de Deus. Manifestamos ao Senhor o desejo de nos tornar justos e pedimos-Lhe: Atraí-nos, Vós, para o alto! Tornai-nos puros! Fazei que se cumpra em nós a palavra do salmo processional que cantamos, ou seja, que possamos pertencer à geração dos que procuram Deus, «que procuram a face do Deus de Jacob» (Sal 24/23, 6). Amem.

O Domingo de Ramos abre, por excelência, a Semana Santa. Relembramos e celebramos a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém, poucos dias antes de sofrer a Paixão, Morte e Ressurreição. Esse dia é chamado assim porque o povo cortou ramos de árvores, ramagens e folhas de palmeiras para cobrir o chão por onde o Senhor passava montado num jumento. Com folhas de palmeiras nas mãos, o povo O aclamava: “Rei dos Judeus”, “Hosana ao Filho de Davi”, “Salve o Messias…” E dessa forma, Cristo entra triunfante em Jerusalém despertando nos sacerdotes e mestres da lei muita inveja, desconfiança, medo de perder o poder. Começa, então, uma trama para condená-Lo à morte, e morte de cruz.

O povo O aclama cheio de alegria e esperança, pois, para eles – Ele como o profeta de Nazaré da Galiléia, o Messias, o Libertador –, certamente, iria libertá-los da escravidão política e econômica, imposta cruelmente pelos romanos naquela época, e religiosa, massacrando a todos com rigores excessivos e absurdos. Mas, essa mesma multidão, poucos dias depois, manipulada pelas autoridades religiosas, O acusaria de impostor, de blasfemador, de falso messias. E, incitada pelos sacerdotes e mestres da lei, exigiria de Pôncio Pilatos, governador romano da província, que O condenasse à morte de cruz.

Afinal de contas, hoje temos Jesus como esse rei, que permanentemente entra em Jerusalém, ou O temos como no sistema governamental da Inglaterra: onde se tem a figura da senhora Rainha, mas quem toma as decisões é o Primeiro-Ministro?

A realeza de Cristo, que nasce da morte no Calvário e culmina no acontecimento, desta [morte] é inseparável, e a ressurreição recorda-nos a centralidade que a Ele compete por motivo do que é e do que fez. Verbo de Deus e Filho de Deus, primeiro de tudo e acima de tudo, “por Ele — como em breve repetiremos no Credo — todas as coisas foram feitas”. O Senhor tem um intrínseco, essencial e inalienável primado na ordem da criação – a respeito da qual é a suprema causa exemplar. E depois que «o Verbo se fez homem e habitou entre nós» (Jo 1, 14), também como homem e Filho do homem, consegue um segundo título na ordem da redenção, mediante a obediência ao desígnio do Pai, mediante o sofrimento da morte e conseqüente triunfo da ressurreição.

Motivados por tantos “reis”, que se apresentam aos nossos olhos hoje, corremos o risco de tê-Lo [Jesus] como mais um somente. Diante da Festa de Ramos, na qual Cristo entra triunfante em Jerusalém, não para instalar um reino cheio de prazeres passageiros, Ele instala o Reino, no qual o trono é a cruz, que apesar de ser tido como um escândalo aos olhos do mundo, passa a ser canal de salvação.

Ser cristão é estar disposto a abraçar a cruz, que não é um peso, mas uma missão, pois só quem carrega a sua cruz é que pode dizer que está decidido a morrer, pois não deve nada. Mas também está decidido a morrer para suas próprias vontades, desejos, sonhos, para realmente assumir não um rei, mas o verdadeiro Rei, Jesus Cristo.

É para esse Reino que Cristo Jesus nos chama, dando-nos uma vocação que nos leva a participar nos poderes d’Ele. Nós todos estamos a serviço, em virtude da consagração batismal. Estamos investidos de uma dignidade e de um cargo real, sacerdotal e profético, para que possamos eficazmente colaborar no seu crescimento e na sua difusão.

Nessa verdade se encerram, igualmente, as palavras do Apocalipse, com as quais o Discípulo Amado [São João] completa, de certo modo e à luz do colóquio, na Sexta-feira Santa, (na residência de Pilatos, em Jerusalém), o fato que já havia sido escrito pelo profeta Daniel. São João anota: “Eis o que vem entre as nuvens” (assim se exprimira já Daniel). “Todos o verão com os seus próprios olhos, até aqueles que O transpassaram (…) Sim. Amém!” (Apoc 1, 7). Precisamente: Amém, essa única palavra autêntica, por assim dizer, a verdade sobre Cristo Rei. Ele não é apenas “a Testemunha fiel”, mas também o Primogênito dos mortos. E se é o Soberano da terra e daqueles que a governam — o Soberano dos reis da terra — é por isso, sobretudo por isso, e definitivamente por isso: porque nos ama e, pelo Seu Sangue, nos libertou do pecado e fez de nós um Reino de sacerdotes para o Seu Deus e Seu Pai.

Tenha uma santa Semana Santa!

Toda Religião inclui, entre símbolos que expressam a sua crença, ‘ lugares sagrados’ que marcam o encontro com o divino. Estes lugares vão desde uma gruta ou uma pequena ermida construída à beira dos caminhos, em locais distantes da cidade, até os grandes templos e catedrais. Em todos eles o que se quer é expressar a fé na divindade e a busca de sentido para a vida.

No tempo da primeira aliança, na época dos patriarcas Abraão constrói um altar para invocar o nome do Senhor, em Betel para invocar o nome do Senhor (cf. Gn 12, 7-9); depois, durante sua caminhada pelo deserto, o povo arma tenda como lugar de reunião e encontro com Deus (cf. Êxodo 33,7-11); mais tarde, mesmo compreendendo que Deus não cabe nos quadros estabelecidos pelos humanos, o povo chega a construir um templo em Jerusalém para ser o lugar de habitação de Deus (cf. 1 Rs 8, 26-29). A construção do lugar de culto tem a ver com a compreensão que o povo tem de Deus e de si mesmo em cada época de sua história.

Há um perigo, que os profetas já haviam indicado, de identificarmos Deus com o próprio lugar de culto ou usar a casa de Deus em beneficio de interesses particulares. Isso aconteceu com o povo de Israel no tempo de Jesus. Diante do templo, transformando em “casa de comércio”, Jesus anuncia novo lugar de encontro com Deus, o seu próprio corpo ressuscitado (cf. João 2, 14-22) presente na comunidade reunida cristã e habitada pelo espírito Santo (cf. Mt 18,20). Por isso, as primeiras comunidades cristãs não tinham templo, nem altares, mas entendiam que o verdadeiro sacrifício era espiritual, adoração a Deus em espírito e verdade (cf. João 4, 23; Efésios 2, 19-22; 1 Pedro 2, 4-10).

Contudo, os cristãos precisavam de um lugar para fazer reunião, escutar a palavra e celebrar a eucaristia. No início se reuniam nas casas (cf. Atos 2, 42-47; 20,7-12), como o próprio Jesus fez em sua última ceia(cf. Lucas 22, 7-13). Depois, veio à perseguição do império Romano, e então a reunião acontecia às escondidas, nas catacumbas, nos túmulos dos mártires, que serviam de altar. Mais importante que a construção em si, era a comunidade reunida em torno da palavra e da Santa Ceia, sinais de Cristo ressuscitado.

Quando, no século IV, Constantino decreta o cristianismo como culto oficial do império, os espaços públicos de uso do estado são adaptados para o culto cristão. A partir daí a Igreja se distancia da proposta original, deixada por Jesus e pelas primeiras comunidades, e de acordo com o perfil que esse distanciamento toma em cada época, também a liturgia sofrerá modificações, e, por conseguinte, também a construção e organização da Igreja. Com o tempo, a Igreja edifício perde a finalidade de lugar de reunião da Igreja-comunidade ao redor da palavra e da Ceia. A liturgia não é mais uma ação realizada com plena participação da assembléia, o padre preside sozinho e de costas para o povo e o altar deixa de ser o centro para dar lugar ao tabernáculo.

O concílio Vaticano II renovou a liturgia, propõe mudanças profundas também no formato e no estilo dos espaços que devem abrigar a assembléia em celebração. O altar volta a ter lugar central, a estante da palavra é valorizado em pé de igualdade com o altar, o lugar para composição da assembléia são colocados em forma de círculo para expressar a Igreja povo de Deus, realidade de comunhão. Como a liturgia é de natureza simbólica, o espaço também, além de funcional, deve ser capaz de traduzir na linguagem dos sinais (beleza, verdade dos materiais, simplicidade, sobriedade…) o sentido do mistério.

Por isso, dentro de um espaço tudo tem que ser pensado com critério: a forma e o estilo da construção; os materiais utilizados; as peças mais importantes como o altar, a estante da Palavra, a cadeira de quem preside e o lugar da assembléia; também as peças menores como o círio e seu pedestal, a cruz procissional, as vestes, as toalhas, as alfaias usadas na Santa Ceia… É importante que a definição do espaço e de sua organização interna seja feita com “conhecimento de causa”.Ao mesmo tempo o espaço deve, de certa forma, transcender a realidade. Neste sentido ele cumpre uma função educativa, na medida que se torna fonte de inspiração permanente, lembrando nossa condição de peregrinos e apontando para definitiva morada.

Continuando o esforço necessário para enraizar a liturgia romana nas várias culturas, os bispos, assistidos por pessoas competentes e fiéis às orientações do Magistério que dizem respeito à disciplina da Igreja universal, devem cuidar em conservar sempre o “verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia, no respeito à unidade substancial do Rito romano, expressa nos livros litúrgicos” . Alguns elementos de reflexão antes de tudo acerca do verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia, e depois acerca do sentido da frase: “no respeito à unidade substancial do Rito romano”, expressa nos livros litúrgicos . Com referência ao espírito da Liturgia não se pode duvidar que o Concílio Vaticano II entendia referir-se a uma realidade sempre presente na Igreja, mesmo se nem sempre vivida com igual acentuação. Uma coisa são as acentuações vitais que ao interno de um mesmo “espírito” a Igreja Ocidental e a Igreja Oriental, nas várias épocas culturais, sublinharam e favoreceram no Povo de Deus, e outra é o “espírito da Liturgia” no seu núcleo fundante e original. Este “espírito” não deriva das formas exteriores, que, na maior parte, são provenientes das culturas nas quais o Cristianismo se difundia, mas é subjacente a elas como aquilo que lhes confere o ser, como instrumento e manifestação exterior de convergência da ação de Cristo e de sua Igreja em nível de graça invisível. É preciso recordar, além disso, que os Padres Conciliares, quando se referiam ao “verdadeiro e autêntico espírito da liturgia” , tinham presente quanto a Constituição sobre a Sagrada liturgia enuncia no seu proêmio (1´4) e na primeira parte do primeiro capítulo (5´13). Se a Reforma litúrgica criou as condições e os meios para fomentar no povo de Deus o restabelecimento de um mais profundo sentido da “Igreja em oração” e da “oração da Igreja”, muito ainda resta por fazer para alcançar aquele objetivo, que sensibilize todos os fiéis de qualquer cultura. Muitos, talvez, se lançaram com ardor no novo, esquecendo-se do antigo. Outros permaneceram ligados às formas exteriores colocando em dúvida a necessidade de renovação, que era bem mais evidente e não podia se confundir com os desvios reprovados não somente pela autoridade competente, mas também pela maioria dos fiéis.
Se a Liturgia não levasse os fiéis a manifestarem com a vida o mistério salvífico de Cristo, Deus e Homem, e a genuína natureza da verdadeira Igreja, onde aquilo que é “humano se ordene ao divino e a ele se subordine o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à cidade futura que buscamos” , não se poderia falar de atuação do verdadeiro e autêntico espírito da Liturgia. Deve-se firmemente compreender que se é uma importante tarefa investigar as formas em que é possível e obrigatório inculturar a liturgia, mais importante ainda e igualmente obrigatório é que a obra redentora de Cristo que está presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas, seja percebida, atuada e vivida em cada povo e língua, para a glória de Deus e a santificação dos homens . É dever dos Pastores guiar o povo que os foi confiado que, como todos os povos, tem necessidade de sinais expressivos de canto, de sentimento e devoção externa, para conjugar o verdadeiro espírito litúrgico com a sua verdadeira religiosidade, com a sua alma mais profunda.

Não é desconhecido, todavia, que a ação de pastoral litúrgica a serviço da nova evangelização deve tomar em consideração as exigências de uma sociedade, como o Brasil, que é multicultural. Graças à presença de vários grupos culturais se opera um enriquecimento para a catolicidade da Igreja. Mas o cuidado espiritual para os católicos que são: “Uma mescla racial e cultural que marcou profundamente e continuará a marcar o modo de ser e de exprimir-se do povo brasileiro” , exige participar solicitude pastoral. Muitos vivem nas áreas urbanas, um ao lado do outro, transformando a sua cultura; para outros, o grau de integração continua a ser limitado, outros enfim continuam a manter a sua cultura original. Este articulado fenômeno implica uma particularmente sensível e partícipe resposta pastoral, confiada à discrição e à prudência apostólica. Por diversas ocasiões pode-se testemunhar este amálgama de raças que convive harmoniosamente em cada Estado da Federação Brasileira. Esta pacífica convivência deve ser incentivada, evitando-se tudo aquilo que pode contrapor as raças e culturas afro-brasileiras, em atitudes estéreis de antagonismo ou de conflitos. A índole do vosso povo, e, mais especialmente, a fé legada pelos primeiros missionários que foram ao Brasil, consolidou a convicção de que se criaram as bases de um recíproco entendimento, que deve continuar servindo de exemplo para muitas nações afora.
Por ocasião da primeira viagem apostólica de João Paulo II, Sua Santidade manifestou em um dos seus discursos: “Rezo para que a um mundo freqüentemente dominado pelas contendas entre povos e raças, o Brasil possa dar (…) uma lição essencial, a da verdadeira integração” . Como compreenderão, o respeito pelas diversas culturas e a correspondente inculturação evangélica aborda questões que merecem um destaque à parte. Não é possível, contudo, descurar aqui a consideração da cultura afro-brasileira no quadro mais amplo da evangelização “ad gentes”, e que hoje é bem presente na reflexão teológica e pastoral de Igrejas particulares em terras do Brasil. Trata-se da delicada questão da aculturação, de modo especial dos ritos litúrgicos, ao vocabulário, às expressões musicais e corporais típicas da cultura afro-brasileira.
Sobre este tema tão complexo podemos tecer algumas considerações. Primeiramente, convém perguntar-se acerca da conveniência de dar ao culto litúrgico uma feição afro-brasileira, como se constata em algumas circunstâncias, onde o elemento negro é bastante acentuado. Todos sabemos que a interação dos costumes e tradições dos brancos, com a maneira de ser dos escravos negros vindos da África, trouxe ao vocabulário, à sintaxe e à prosódia da língua portuguesa falada no Brasil uma feição própria. A presença de elementos negros na arte sacra barroca do período colonial, que deixou tão belos monumentos da arquitetura e escultura religiosa, na música sacra e profana e nos festejos da religiosidade popular, marcou de modo inconfundível as expressões culturais mais autênticas desta sociedade multirracial que é o Brasil. Nesta mesma história já se mostram presentes formas válidas de inculturação, que, sem trair a verdade da fé e da revelação cristãs, souberam incorporar a estes legítimos valores e expressões da cultura popular que, dessa forma, eram evangelizados. Salta, porém, à vista de que se estaria distanciando da finalidade específica da evangelização, acentuar um destes elementos formadores da cultura brasileira, isolá-lo deste processo interativo tão enriquecedor, de modo quase a se tornar necessária a criação de uma nova liturgia própria para as pessoas de raça negra. Mais ainda, quando se pretende dar a tal rito litúrgico uma apresentação externa e uma estruturação tanto nas vestes, como na linguagem, no canto, nas cerimônias e objetos litúrgicos que acabam por assumir elementos provindos dos assim chamados cultos afro-brasileiros, sem a rigorosa aplicação de um discernimento sério e profundo acerca da sua compatibilidade com a Verdade revelada por Jesus Cristo.
Assim, por exemplo, é preciso manter uma adequada e prudente vigilância em certos ritos que inspiram a aproximação do augusto Mistério Trinitárias ao panteão dos espíritos e divindades dos cultos africanos, chegando-se mesmo, em certos casos, a modificar as fórmulas sacramentais em sua referência trinitária; mais ainda, deve-se assinalar, corrigindo oportunamente, a introdução no rito sacramental católico à Santa Missa, mas também em outros sacramentos, de ritos, cantos e objetos pertencentes explicitamente ao universo dos cultos afro-brasileiros. Faz-se necessária e urgente uma corajosa vigilância dos Bispos, para a solerte e imediata correção de tais excessos, sempre que eles se manifestem. A Igreja Católica do Brasil tributa um sincero respeito em relação aos cultos afro-brasileiros, mas considera nocivo o relativismo concreto de uma prática entre ambos ou de uma mistura entre eles, como se tivessem o mesmo valor, pondo em perigo a identidade da fé cristã católica.
A Igreja sente-se no dever de afirmar que o sincretismo é danoso ali onde a verdade do rito cristão e a expressão da fé podem facilmente ser comprometidas aos olhos dos fiéis, em detrimento de uma autêntica evangelização. Aos Bispos, em diálogo constante e confiante com a Sé Apostólica, foi entregue a responsabilidade de saber escolher os tempos e os modos de promover a inculturação da fé, através das celebrações litúrgicas que a exprimem e sustentam conscientes que os tempos e os modos requerem uma reflexão paciente e rigorosa, baseada sobre uma autêntica teologia destinada a uma renovação espiritual, que se inspire em princípios católicos sobre a inculturação. Não se pode, porém, falar da renovação espiritual das Dioceses Brasileiras, sem examinarmos com atenção também o estado da fé e da participação na Eucaristia, demonstrado pelos fiéis; “a Eucaristia é a fonte, o centro e o ápice da vida da Igreja” . O dom sincero de Si mesmo, feito por Jesus e oferecido na Cruz, é tornado presente e aplicado na Eucaristia, e os presbíteros “unem as preces dos fiéis ao sacrifício da Cabeça e, no sacrifício da Missa, representam e aplicam o único sacrifício do Novo Testamento” . Portanto, administrar este grande mistério é um dos maiores privilégios e responsabilidades do múnus episcopal. Infelizmente, às vezes pode acontecer que a Liturgia seja alterada, de maneira séria, por omissões ou acréscimos ilícitos aos textos aprovados. Nestas circunstâncias, “compete aos Bispos extirpar estes abusos, pois a regulamentação da Liturgia depende do Bispo, dentro dos limites traçados pelo direito” . A relação verdadeira entre as celebrações do Mistério Pascal e uma determinada cultura se concretiza no momento em que ela permite ao Evangelho penetrar na própria vida da cultura, “superando os elementos culturais incompatíveis com a fé e com a vida cristã e elevando os valores ao mistério da salvação que provém de Cisto” . A tarefa de adaptação e de inculturação é importante para o futuro do renovamento da vida litúrgica. A Constituição litúrgica anunciou o princípio e deu as primeiras indicações de procedimento. A Instrução sobre a Liturgia Romana e a inculturação aprofundou o tema, precisou os procedimentos que devem ser seguidos por parte das Conferências Episcopais, à luz do Direito Canônico e da experiência do primeiro quarto de século depois da reforma litúrgica .