Solenidade de Pentecostes
Basílica de São Pedro
Domingo, 12 de junho de 2011

Queridos irmãos e irmãs!

Celebramos hoje a grande Solenidade de Pentecostes. Se, em certo sentido, todas as solenidades litúrgicas da Igreja são grandes, esta de Pentecostes o é de maneira singular, porque assinala, chegado o quinquagésimo dia, o cumprimento do evento da Páscoa, da morte e ressurreição do Senhor Jesus, através do dom do Espírito do Ressuscitado. Para Pentecostes, a Igreja preparou-nos nos dias passados com a sua oração, com a invocação repetida e intensa a Deus para obter uma renovada efusão do Espírito Santo sobre nós. A Igreja reviveu, assim, aquilo que aconteceu nas suas origens, quando os Apóstolos, reunidos no Cenáculo de Jerusalém, “eram perseverantes e unânimes na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele” (At 1,14). Estavam reunidos em humilde e confiante espera de que se cumprisse a promessa do Pai comunicada a eles por Jesus: “Vós sereis batizados no Espírito Santo daqui há poucos dias… descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força” (At 1,5.8).

Na liturgia de Pentecostes, à narração dos Atos dos Apóstolos sobre o nascimento da Igreja (cf. At 2,1-11), corresponde o salmo 103, que escutamos: um louvor a toda a criação, que exalta o Espírito Criador, o qual fez tudo com sabedoria: “Ó Senhor, quão variadas são as vossas obras! Feitas, todas, com sabedoria, a terra está cheia das coisas que criastes… Ao Senhor, glória eterna; alegre-se o Senhor em suas obras!” (Sal 103,24.31). Aquilo que deseja dizer-vos a Igreja é isto: o Espírito Criador de todas as coisas e o Espírito Santo que Cristo fez descer do Pai sobre a comunidade dos discípulos são um e o mesmo: criação e redenção se pertencem reciprocamente e constituem, em profundidade, um único mistério de amor e de salvação. O Espírito Santo é, antes de tudo, o Espírito Criador e, portanto, Pentecostes é a festa da criação. Para nós, cristãos, o mundo é fruto de um ato de amor de Deus, que fez todas as coisas e das quais Ele se alegra porque é “coisa boa”, “coisa muito boa”, como recorda-nos a narração da criação (cf. Gen 1,1-31). Deus, por isso, não é o totalmente Outro, inominável e obscuro. Deus revela-se, tem um rosto, Deus é razão, Deus é vontade, Deus é amor, Deus é beleza. A fé no Espírito Criador e a fé no Espírito que o Cristo Ressuscitado dá aos Apóstolos e dá a cada um de nós estão, portanto, inseparavelmente unidas.

A segunda Leitura e o Evangelho de hoje mostram-nos essa conexão. O Espírito é Aquele que nos faz reconhecer em Cristo o Senhor, e faz-nos pronunciar a profissão de fé da Igreja: “Jesus é o Senhor” (cf. 1 Cor 12,3b). Senhor é o título atribuído a Deus no Antigo testamento, título que na leitura da Bíblia ocupava o lugar do seu impronunciável nome. O Credo da Igreja é nada mais que desenvolvimento disto que se diz com esta simples afirmação: “Jesus é o Senhor”. Dessa profissão de fé, São Paulo diz-nos que se trata da palavra e da obra do Espírito Santo. Se desejamos estar no Espírito, devemos aderir a esse Credo. Fazendo-o nosso, aceitando-o como nossa palavra, adentramos na obra do Espírito Santo. A expressão “Jesus é o Senhor” pode-se ler nos dois sentidos. Significa: Jesus é Deus, e contemporaneamente: Deus é Jesus. O Espírito Santo ilumina esta reciprocidade: Jesus tem dignidade divina, e Deus tem o rosto humano de Jesus. Deus se mostra em Jesus e, com isso, dá-nos a verdade sobre nós mesmos. Deixar-nos iluminar no profundo por essa palavra é o evento de Pentecostes. Recitando o Credo, nós entramos no mistério do primeiro Pentecostes: da desordem de Babel, daquelas vozes que se chocam uma contra a outra, acontece uma radical transformação: a multiplicidade se faz multiforme unidade, do poder unificador da Verdade cresce a compreensão. No Credo, que nos une de todos os ângulos da Terra, que, mediante o Espírito Santo, permite que nos compreendamos, ainda que na diversidade das línguas, por meio da fé, a esperança e o amor, forma-se a nova comunidade da Igreja de Deus.

O trecho evangélico oferece-nos depois uma maravilhosa imagem para clarear a conexão entre Jesus, o Espírito Santo e o Pai: o Espírito Santo é representado como o sopro de Jesus ressuscitado (cf. Jo 20,22). O evangelista João retoma aqui uma imagem da narração da criação, lá onde se diz que Deus soprou nas narinas do homem um sopro de vida (cf. Gen 2,7). O sopro de Deus é vida. Ora, o Senhor sopra na nossa alma um novo sopro de vida, o Espírito Santo, a sua mais íntima essência, e, desse modo, acolhe-nos na família de Deus. Com o Batismo e a Crisma, nos é dado este dom de modo específico, e com os sacramentos da Eucaristia e da Penitência, isso se repete continuamente: o Senhor sopra na nossa alma um sopro de vida. Todos os Sacramentos, cada um de maneira própria, comunicam ao homem a vida divina, graças ao Espírito Santo que opera neles.

Na liturgia de hoje, colhemos ainda uma ulterior conexão. O Espírito Santo é Criador, é ao mesmo tempo Espírito de Jesus Cristo, ainda que o Pai, o Filho e o Espírito Santo sejam um só e único Deus. E à luz da primeira Leitura podemos complementar: o Espírito Santo anima a Igreja. Ela não deriva da vontade humana, da reflexão, da habilidade do homem e da sua capacidade organizativa, posto que se assim fosse já há tempos estaria extinta, assim como passa cada coisa humana. Ela é, ao contrário, o Corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo. As imagens do vento e do fogo, usadas por São Lucas para representar a vinda do Espírito Santo, (cf. At 2,2-3), recordam o Sinai, onde Deus revelou-se ao povo de Israel e lhe havia concedido a sua aliança: “Todo o monte Sinai fumegava – lê-se no Livro do Êxodo –, porque o Senhor tinha descido sobre ele no meio de chamas” (19,18). De fato, Israel festejava o quinquagésimo dia após a Páscoa, depois da comemoração da fuga do Egito, como a festa do Sinai, a festa do Pacto. Quando São Lucas fala de línguas de fogo para representar o Espírito Santo, relembra aquele antigo Pacto, estabelecido com base na Lei recebida por Israel sobre o Sinai. Assim, o evento de Pentecostes é representado como um novo Sinai, como o dom de um novo Pacto em que a aliança com Israel é estendida a todos os povos da Terra, em que caem todos os obstáculos da velha Lei e aparece o seu coração mais santo e imutável, isto é, o amor que exatamente o Espírito Santo comunica e difunde, o amor que abraça todas as coisas. Ao mesmo tempo, a Lei dilata-se, abre-se, também se tornando mais simples: é o Novo Pacto, que o espírito “escreve” nos corações de quanto creem em Cristo. A extensão do Pacto a todos os povos da Terra é representada por São Lucas através de um elenco de populações consideráveis por aquela época (cf. At 2,9-11). Com isso, nos é dita uma coisa muito importante: que a Igreja é católica desde o primeiro momento, que a sua universalidade não é o fruto da inclusão sucessiva de diversas comunidades. Desde o primeiro instante, de fato, o Espírito Santo a criou como a Igreja de todos os povos; essa abraça o mundo inteiro, supera todas as fronteiras de raça, classe, nação; abate todas as barreiras e une os homens na profissão do Deus uno e trino. Desde o início a Igreja é una, católica e apostólica: essa é a sua verdadeira natureza e como tal deve ser reconhecida. Ela é santa, não graças à capacidade dos seus membros, mas porque Deus mesmo, com o seu Espírito, cria-a, purifica-a e santifica-a sempre.

Enfim, o Evangelho de hoje disponibiliza-nos esta belíssima expressão: “Os discípulos alegraram-se ao ver o Senhor” (Jo 20,20). Essas palavras são profundamente humanas, O Amigo perdido está de novo presente, e quem antes estava chateado se alegra. Mas isso diz muito mais. Porque o Amigo perdido não vem de um lugar qualquer, mas da noite da morte; e Ele a superou! Ele não é um qualquer, mas sim é o Amigo e conjuntamente Aquele que é a Verdade que faz os homens viverem; e aquilo que dá não é uma alegria qualquer, mas a alegria mesma, dom do Espírito Santo. Sim, é belo viver porque sou amado, e é a Verdade que me ama. Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor. Hoje, em Pentecostes, essa expressão é destinada também a nós, porque na fé podemos vê-Lo; na fé Ele vem entre nós e também a nós mostra as mãos e o lado, e nós nos alegramos. Por isso queremos rezar: Senhor, mostra-te! Dá-nos o dom da tua presença, e teremos o dom mais belo: a tua alegria. Amém!

“Verdadeiramente este era o Filho de Deus!”

Na sua paixão – escreve São Paulo a Timóteo – Jesus Cristo “deu o seu testemunho fazendo sua bela profissão” (1 Tm 6, 13). Nós nos perguntamos, testemunho de quê? Não da verdade de sua vida e da sua causa. Muitos morreram e, ainda hoje, morrem, por uma causa equivocada, acreditando que seja justa. A ressurreição, esta sim testemunha a verdade de Cristo: “Deus deu a todos prova segura sobre Jesus, ressuscitando-o dos mortos”, diz o apóstolo, no Areópago de Atenas (At 17, 31).

A morte não testemunha a verdade, mas o amor de Cristo. De tal amor se constitui, de fato, a prova suprema: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Pode-se objetar que há um amor maior do que dar a vida por seus amigos, é dar sua vida pelos seus inimigos. Mas foi isso precisamente que Jesus fez: “Cristo morreu pelos ímpios – escreve o apóstolo na Carta aos Romanos –. A rigor, alguém morreria por um justo; por uma pessoa muito boa talvez alguém se anime a morrer. Mas eis aqui uma prova brilhante de amor de Deus por nós: quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Ro 5, 6-8). “Amou-nos quando éramos inimigos, para poder nos tornar amigos” [1].

Uma cerca unilateral “teologia da cruz” pode fazer-nos esquecer o essencial. A cruz não é só juízo de Deus sobre o mundo, refutação de sua sabedoria e revelação de seu pecado. Não, não é um “não” de Deus ao mundo, mas o seu “sim” de amor: “A injustiça, o mal como realidade não pode ser simplesmente ignorado, deixado como está. Deve ser eliminado, vencido. Apenas esta é a verdadeira misericórdia. E que agora, já que os homens não são capazes de fazê-lo, Deus mesmo o faz – esta é a bondade incondicional de Deus” [2].

* * *

Mas como ter a coragem de falar do amor de Deus, enquanto temos diante dos olhos tantas tragédias humanas, como a catástrofe que se abateu sobre o Japão, ou as mortes no mar nas últimas semanas? Não fale de tudo? Mas permanecer em completo silêncio seria trair a fé e ignorar o significado do mistério que celebramos.

Há uma verdade a se proclamar com força na Sexta-feira Santa. Aquele que contemplamos sobre a cruz é Deus “in persona”. Sim, é também o homem Jesus de Nazaré, mas esta é uma pessoa com o Filho do Pai Eterno. Até que não se reconheça e leve a sério o dogma fundamental da fé cristã – o primeiro definido dogmaticamente em Niceia – que Jesus Cristo é o Filho de Deus, o próprio Deus, da mesma substância do Pai, a dor humana permanecerá sem resposta.

Não se pode dizer que “a questão de Jó permanece sem resposta”, que nem mesmo a fé cristã teria uma resposta ao sofrimento humano, se de saída se recusa a resposta que essa afirma ter. O que se faz para assegurar a alguém que certa bebida não contém veneno? Bebe-se antes dele, na frente dele! Assim fez Deus com os homens. Ele bebeu o amargo cálice da paixão. Não pode ser assim tão envenenado o sofrimento humano, não pode ser apenas negatividade, perda, absurdo, se o próprio Deus escolheu prová-lo. No fundo do cálice deve haver uma pérola.

O nome da pérola nós conhecemos: Ressurreição! “Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18), e ainda “Enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição” (Ap 21, 4).

Se a corrida da sua vida acaba aqui, seria muito desesperador pensar nos milhões, talvez bilhões, de seres humanos que iniciam em desvantagem, mergulhados na pobreza e no subdesenvolvimento desde o ponto de partida, até mesmo sem poder participar corrida. Mas não é assim. A morte não só elimina as diferenças, mas as derruba. “Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado” no inferno (cf. Lc 16, 22-23).

Não podemos aplicar de forma simplista este esquema à realidade social, mas ele está lá para nos alertar que a fé na ressurreição não deixa que ninguém em seu silencioso viver. Lembra-nos que a máxima “viver e deixar viver” nunca deve se tornar a máxima “viver e deixar morrer”.

A resposta da cruz não é apenas para nós, cristãos, é para todos, porque o Filho de Deus morreu por todos. Há no mistério da redenção um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo; é o fato em si, e a tomada de consciência e resposta de fé a ele. O primeiro se estende para além do segundo. “O Espírito Santo – diz o texto do Concílio Vaticano II – de um modo conhecido por Deus, dá a todos a oportunidade de estar associados ao mistério pascal” [3].

Um dos modos de estar envolvido no mistério pascal é próprio do sofrimento: “Sofrer – escreveu João Paulo II na sequência do atentado que sofreu e da longa convalescença – significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade” [4]. O sofrimento, cada sofrimento, mas especialmente o dos inocentes, põe em contato de modo misterioso, ‘conhecido só a Deus’, com a cruz de Cristo.

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Depois de Jesus, aqueles que têm dado a ele o seu belo testemunho e que têm bebido do cálice são os mártires! As histórias de suas mortes eram intituladas inicialmente “passio”, paixão, como o sofrimento de Jesus que acabamos de escutar. O mundo cristão volta a ser visitado pela prova do martírio, que se acreditava finda com a queda dos regimes totalitários ateus. Não podemos silenciar perante este testemunho. Os primeiros cristãos honravam seus mártires. Os atos de seus martírios eram lidos e distribuídos entre as igrejas com grande respeito. Hoje mesmo, Sexta-feira Santa de 2011, em um grande país asiático, os cristãos oraram e marcharam em silêncio pelas ruas de algumas cidades para protestar contra a ameaça que paira sobre eles.

Há uma coisa que distingue os atos autênticos dos mártires dos legendários, verificada depois que finda a perseguição. Nos primeiros, quase não há vestígios de polêmica contra os perseguidores, toda a atenção é concentrada no heroísmo dos mártires, não sobre a perversidade dos juízes e carrascos. São Cipriano ordenaria aos seus dar 25 moedas de ouro para o carrasco que cortaria a cabeça. Eles são discípulos de alguém que morreu dizendo: “Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem”. “O sangue de Jesus – recorda o Santo Padre em seu último livro – fala uma linguagem diferente da do sangue de Abel: não pede vingança nem punição, mas é reconciliação [5].

Também o mundo se inclina diante dos testemunhos modernos da fé. Isso se explica por exemplo pelo sucesso inesperado na França do filme “Homens e Deuses”, que conta a história de sete monges cistercienses assassinados em Tibhirine, em março de 1996. E como não ficar admirados com as palavras escritas em seu testamento por um político católico, Shahbaz Bhatti, assassinado por causa de sua fé no mês passado? Sue testamento é deixado também para nós, seus irmãos na fé, e seria ingratidão deixá-lo cair no esquecimento.

“Foram-me propostos – escrevia ele – altos cargos no governo e me pediram para abandonar a minha batalha, mas eu sempre recusei isso, mesmo sob o risco da minha própria vida. Eu não quero popularidade, não quero posições de poder. Eu só quero um lugar aos pés de Jesus. Quero que a minha vida, o meu caráter, as minhas ações falem por mim e digam que estou seguindo Jesus Cristo. Esse desejo é tão forte em mim que eu me considerarei privilegiado se, no meu esforço e na minha luta para ajudar os necessitados, os pobres, os cristãos perseguidos de meu país, Jesus quisesse aceitar o sacrifício da minha vida. Eu quero viver para Cristo e por Ele quero morrer”.
Parece ressoar o mártir Inácio de Antioquia, quando veio a Roma e sofreu o martírio. O silêncio das vítimas não justifica a culpável indiferença do mundo para com seu destino. “O justo perece sem que ninguém se aperceba; as pessoas de bem são arrebatadas e ninguém se importa (Is 57,1)”!

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Os mártires cristãos não são os únicos sozinhos, temos visto, a sofrer e morrer ao nosso redor. O que podemos oferecer aos que não crêem, além da certeza da nossa fé de que há um resgate para a dor? Podemos sofrer com os que sofrem, chorar com os que choram (Rm 12, 15). Antes de anunciar a ressurreição e a vida, na frente das irmãs enlutadas de Lázaro, Jesus chorou (Jo 11, 35).

Neste momento, sofrer e chorar em particular com o povo japonês, imerso em uma das mais terríveis catástrofes naturais da história. Podemos dizer a esses nossos irmãos em humanidade que estamos admirados por sua dignidade e exemplo de postura e ajuda mútua que deram ao mundo.

A globalização tem ao menos este efeito positivo: a dor de um povo se torna a dor de todos, suscita a solidariedade de todos. Dá-nos a chance de descobrir que somos uma família humana, ligada no bem e no mal. Ajuda-nos a superar as barreiras de raça, cor e religião. Como diz o verso de um de nossos poetas, “Homens, paz! Na extensa terra, grande é o mistério” [6].

Mas devemos também recolher o ensinamento de eventos como este. Terremotos, furacões e outros desastres que atingem inocentes e culpáveis nunca são um castigo de Deus. Dizer o contrário disso significa ofender a Deus e os homens. Mas servem de alerta: neste caso, a advertência de não se iludir que bastam a ciência e a técnica para se salvar. Se não formos capazes de estabelecer limites, podemos nos tornar, estamos vendo, a ameaça mais grave de todas.

Também houve um terremoto no momento da morte de Cristo: “O centurião e seus homens que montavam guarda a Jesus, diante do estremecimento da terra e de tudo o que se passava, disseram entre si, possuídos de grande temor: Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!” (Mt 27, 54). Mas houve um outro ainda “maior” no momento de sua ressurreição: “E eis que houve um violento tremor de terra: um anjo do Senhor desceu do céu, rolou a pedra e sentou-se sobre ela” (Mt 28, 2).

Assim será sempre. A cada terremoto de morte sucederá um terremoto de ressurreição de vida. Alguém disse: “Agora só um Deus pode nos salvar” (Nur noch ein uns kann Gott retten [7]). Temos a garantia de que o fará porque “de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3, 16).

A segunda parte da obra “Jesus de Nazaré”, de Joseph Ratzinger – Bento XVI, foi lançada nesta quinta-feira, 10. A obra está dividida em nove capítulos e é dedicada aos momentos que precederam a morte de Jesus e a sua ressurreição, mostrando as palavras e acontecimentos decisivos da vida de Cristo.

A seguir, confira um resumo dos principais pontos abordados em cada um dos capítulos da obra:

Capítulo 1 – Fala sobre a entrada de Jesus em Jerusalém, recebido com festa pela multidão, sentado sobre um jumentinho, como “um rei da paz e um rei da simplicidade, um rei dos pobres”. Não é um revolucionário político, “não se fundamenta sobre a violência; não inicia uma revolta militar contra Roma. O seu poder é de caráter contrário: é na pobreza de Deus, na paz de Deus que Ele identifica o único poder salvífico”, salienta Bento XVI.

O Santo Padre destaca que a violência não instaura o Reino de Deus. Ao contrário, é um dos instrumentos preferidos do anticristo, não servindo à humanidade, e sim desumanizando-a. “Jesus não vem como destruidor; não vem com a espada do revolucionário. Vem com o dom da cura”. Cristo, salienta o Bispo de Roma, dedica-se àqueles que, por causa de suas enfermidades, são colocados a margem da sociedade, mostrando Deus como Aquele que ama.

Particularmente, Ele é recebido com alegria pelos pequenos, “por aqueles que são capazes de ver com o coração puro e com simplicidade e que são abertos a sua bondade”, enfatiza o Papa. No dia seguinte à entrada em Jerusalém, Jesus combate a relação entre religião e comércio, salientando que o tempo se tornou um covil de ladrões.

Capítulo 2 – Após a entrada em Jerusalém, é proclamado “o grande discurso escatológico de Jesus, com os temas centrais da destruição do templo, da destruição de Jerusalém, do Juízo final e do fim do mundo”. Jesus, conta o Pontífice, tantas vezes quis acolher os filhos de Jerusalém, mas eles não quiseram, e depois os romanos destróem o templo e fazem um massacre dos judeus.

Para o judaísmo, “a destruição do templo deve ter sido um grande choque”: com o fim dos sacrifícios expiatórios eles não poderiam fazer nada que compensasse o mal crescente no mundo. Mas, com Jesus, “é superada a época do tempo de pedra. Inicio-se algo novo. Jesus mesmo é colocado no lugar do tempo, é Ele o novo templo, é a presença de Deus vivente. Nele Deus e homem, Deus e o mundo se encontram”. No seu amor, desfaz-se todo o pecado do mundo.

Jesus, no discurso escatológico, fala do tempo dos pagãos, localizado entre a destruição de Jerusalém e do fim do mundo: durante esse tempo, “o Evangelho deve ser levado a todo o mundo e a todos os homens: somente depois a história poderá chegar a sua meta”.

Deus quer salvar a todos. Jesus diz “o céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”. A Palavra, salienta Bento XVI, é mais real e mais duradoura que todo o mundo material, “é a realidade verdadeira e confiável. Os elementos cósmicos passam; a palavra de Jesus é o verdadeiro ‘firmamento’ no qual o homem pode estar e permanecer”.

Capítulo 3 – Ao lavar os pecados, Jesus se despoja de seu esplendor divino para purificar a sujeira do mundo e para “tornar-nos capazes de participar do banquete nupcial de Deus”, realizando uma mudança radical na história da religião: diante de Deus, “não é a prática de rituais que purifica”, mas é “a fé que purifica o coração”.

O Papa explica que a novidade do Evangelho não pode consistir na elevação da prestação moral. “A nova Lei é a graça do Espírito Santo, não é uma nova norma, mas a nova interioridade doada pelo próprio Espírito de Deus”, salienta.

Segundo Bento XVI, somente se as pessoas se deixarem ser lavadas repetidamente por Deus poderão aprender a fazer junto a Ele aquilo que Ele fez. “Devemos deixar-nos imergir na misericórdia do Senhor para que, assim, nosso coração possa ser caminho de justiça”, salienta o Papa. O mandamento novo do amor “não é simplesmente uma exigência nova e superior: ele está ligado à novidade de Jesus Cristo – ao crescente ser imerso n’Ele”, afirma o Santo Padre.

A pureza é um dom, como ser cristão também é um dom que se desenvolve na dinâmica do viver e agir junto com este dom. Joseph Ratzinger explica que Pedro e Judas são dois modos diferentes de reagir diante desse dom. Ambos o acolhem, mas depois um o renega e outro o trai. Pedro, arrependido, crê no perdão. Também Judas arrepende-se, mas não “consegue mais acreditar no perdão. O seu arrependimento torna-se desespero… vê então somente as próprias trevas, é destrutivo e não é um verdadeiro arrependimento”. Em Judas, encontra-se o perigo que percorre todos os tempos, o perigo de quem, uma vez iluminado, através de uma série de formas aparentemente pequenas de infidelidade, decai espiritualmente e chega, ao final, saindo da luz, entra na noite e não é mais capaz de conversão.

Além disso, em Judas, que o trai, Jesus experimenta “a incompreensão, a infidelidade até no interior do círculo mais íntimo dos amigos. A ruptura da amizade acontece até na comunidade sacramental da Igreja, onde sempre de novo há pessoas que tomam ‘o seu pão’ e o atraiçoam”.

Capítulo 4 – A oração sacerdotal de Jesus é compreensível somente com o pano de fundo da liturgia da festa judaica da Expiação (Yom kippùr). A elevação de Jesus sobre a Cruz constitui “o dia da Expiação do mundo, em que toda a história do mundo encontra o seu sentido”: aquele de reconciliar-se com Deus. O não ser reconciliado com Deus constitui o problema essencial de toda a história do mundo.

A missão de Jesus é universal, é a de fazer com que “o homem, no tornar-se uma só coisa com Deus, volte a ser totalmente ele mesmo. Essa transformação, no entanto, tem o preço da cruz e, para as testemunhas de Cristo, aquele da disponibilidade do martírio”.

Capítulo 5 – O Papa afronta a questão das datas distintas da Última Ceia entre os Evangelhos Sinóticos e o Evangelho segundo João. Salienta que a pesquisa histórica pode chegar somente até certo grau de probabilidade, nunca a uma certeza última. “Se a certeza da fé baseasse-se exclusivamente sobre uma abordagem histórico-científica, permaneceria sempre passível de revisão”, adverte Bento XVI, complementando que a certeza última é-nos dada pela fé – o crer com a Igreja guiada pelo Espírito Santo.

Segundo o Papa, “a Última Ceia significa a sua despedida, pois não pertencia a nenhum determinado rito judaico. Ele dava algo de novo, dava a si mesmo como o verdadeiro Cordeiro, instituindo assim a Páscoa”. Bento XVI salienta que “aquilo que a Igreja celebra na Missa não é a última ceia, mas aquilo que o Senhor, durante a última ceia, instituiu e confiou à Igreja: a memória da sua morte sacrifical”.

Capítulo 6 – No Getsêmani, Jesus experimentou a última solidão e toda a tribulação do ser homem. Pedro é contrário à cruz e é apontado pelo Papa como sinal daquela atitude que tenta continuamente os cristãos e também a Igreja: sem a cruz, chegar ao sucesso.

Jesus pede que os discípulos façam vigília, mas é em vão. Uma angústia suprema assola Jesus, na consciência de tomar sobre si todo o mal do mundo: “é o encontra mesmo entre luz e trevas, entre vida e morte – o verdadeiro drama da escolha que caracteriza a história humana”. Jesus eleva a sua súplica ao Pai, Àquele que pode salvá-lo da morte.

Capítulo 7 – Bento XVI aborda o processo contra Jesus e sublinha que não foi o povo judeu como tal que desejou a morte de Cristo, pois também Jesus e seus discípulos eram judeus. Quem o acusava era a aristocracia do templo, mas com exceções (como Nicodemos), e os apoiadores da soltura de Barrabás.

Durante o processo, Pilatos pergunta: “O que é a verdade?”. O Papa indica: “A não redenção do mundo consiste no não reconhecimento da verdade, uma situação que, depois, conduz inevitavelmente ao domínio do pragmatismo e, desde modo, faz que o poder dos mais fortes torne-se deus deste mundo”.

Bento XVI recorda que, da mesma forma como Pilatos, muitos hoje entendem a questão acerca da verdade “irresolvível”. “Mas, sem a verdade, o homem não alcança o sentido da vida, deixa o campo aos mais fortes. A verdade torna-se reconhecível em Jesus Cristo. Externamente, ela é imponente no mundo – como Cristo, frente aos critérios do mundo, parece sem poder… é crucificada. Mas exatamente assim, na total falta de poder, Ele é poderoso, e somente assim a verdade torna-se sempre novamente uma potência”.

Capítulo 8 – A crucificação e a deposição de Jesus no sepulcro. O Papa recorda que ninguém esperava o fim do Messias na cruz, um fato, num primeiro momento, incompreensível e que levou a uma nova compreensão da Escritura.

Bento XVI recorda que a primeira palavra de Jesus sobre a Cruz é o pedido de perdão para os crucificadores, pois “não sabem o que fazem”. Ele também indica a figura do bom ladrão sobre a cruz como a imagem da esperança, “a certeza consoladora de que a misericórdia de Deus pode alcançar-nos também no último instante; a certeza de que a oração que implora a sua bondade não é em vão”.

O Papa também defende que “o bem é sempre infinitamente maior que todo o mal, por mais terrível que seja. Por isso, ao centro do ministério apostólico e do anúncio do Evangelho deve estar o ingresso no mistério da cruz. Ali, a obscuridade e a ilogicidade do pecado encontram-se com a santidade de Deus na sua luminosidade deslumbrante para os nossos olhos e isso vai além da nossa lógica. No entanto, na mensagem do Novo Testamento e na sua verificação na vida dos santos, o grande mistério torna-se totalmente luminoso. O mistério da expiação não deve ser sacrificado devido a qualquer racionalismo pedante”.

Capítulo 9 – A ressurreição de Jesus dentre os mortos. “Sem a fé na ressurreição a fé cristã é morta. Somente se Jesus ressuscitou aconteceu aquilo de verdadeiramente novo que transforma o mundo e a situação do homem”, diz o Papa.

O Pontífice explica que a ressurreição não foi o milagre de um cadáver reanimado. “Foi a entrada em um gênero de vida totalmente novo, rumo a uma vida não mais sujeita à lei do morrer e do tornar-se, mas que vai além disso – uma vida que inaugurou uma nova dimensão do ser homens. É uma espécie de ‘mutação decisiva’, um salto de qualidade. Está aberta uma nova possibilidade de ser homem, uma possibilidade que interessa a todos e abre um futuro, um novo gênero de futuro para os homens”.

Bento XVI questiona se a ressurreição estaria em contraste com a ciência. “Em toda a história daquilo que vive, os inícios das novidades são pequenos, quase invisíveis – podem ser ignorados. O Senhor mesmo disse que o ‘reino dos céus’, neste mundo, é como um grão de mostarda, a menor de todas as sementes. Mas traz em si a potencialidade infinita de Deus. A ressurreição de Jesus, do ponto de vista da história do mundo, é imperceptível, é a menor semente da história. Essa inversão da proporções faz parte dos mistérios de Deus. No final da contas, aquilo que é grande, poderoso, é o pequeno. E a semente pequena é a verdadeiramente grande. A ressurreição é um evento dentro da história que, todavia, quebra o âmbito da história e a supera”.

O Pontífice declara que é próprio do mistério de Deus agir de modo submisso. “Somente aos poucos Ele constrói na grande história da humanidade a sua história… Continuamente Ele bate de modo submisso na porta de nossos corações e, se lhe abrimos, lentamente torna-nos capazes de ‘ver’. Não é exatamente esse o estilo divino? Não sobrecarregar com o poder exterior, mas dar liberdade, doar e suscitar amor”.

Conclusão – E subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai e, de novo, vira em glória. O testemunho dos discípulos de Jesus “traduz-se essencialmente em uma missão: devem anunciar ao mundo que Jesus é o Vivente – a Vida mesma”.

Segundo o Papa, a narrativa do Evangelho de São Lucas sobre a ascensão diz que “os discípulos ficaram cheios de alegria depois que o Senhor ficou definitivamente distante deles. Não se sentem abandonados. Estão seguros de que o Ressuscitado exatamente agora está presente em meio a eles de uma maneira nova e poderosa, que não se pode mais perder. Está sempre presente em meio a nós e por nós”.

A confiança e a razão da alegria dos cristãos é que o Senhor sempre vem no momento oportuno, na expectativa de que Ele virá na glória. A fé no retorno de Cristo é o segundo pilar da profissão cristã. Isso implica a certeza na esperança de que Deus enxugará toda a lágrima, não permanecerá nada que seja privado de sentido, toda injustiça será superada e estabelecida a justiça. A vitória do amor será a última palavra da história do mundo. Nesse meio tempo, é pedida aos cristãos a vigilância. Vigilância significa sobretudo abertura ao bem, à verdade, a Deus, em meio a um mundo frequentemente inexplicável e em meio ao poder do mal. Os cristãos invocam a vinda definitiva de Jesus e veem, ao mesmo tempo, com alegria e gratidão Ele já agora antecipa a sua vinda, já agora entra em meio a nós. ‘Eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo'”.

Amados irmãos e irmãs!

“Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer” (Lc 22, 15): com estas palavras Jesus inaugurou a celebração do seu último banquete e da instituição da Sagrada Eucaristia. Jesus foi ao encontro daquela hora, desejando-a. No seu íntimo, esperou aquele momento em que haveria de dar-Se aos seus sob as espécies do pão e do vinho. Esperou aquele momento que deveria ser, de algum modo, as verdadeiras núpcias messiânicas: a transformação dos dons desta terra e o fazer-Se um só com os seus, para os transformar e inaugurar assim a transformação do mundo.

No desejo de Jesus, podemos reconhecer o desejo do próprio Deus: o seu amor pelos homens, pela sua criação, um amor em expectativa. O amor que espera o momento da união, o amor que quer atrair os homens a si, para assim realizar também o desejo da própria criação: esta, de fato, aguarda a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rm , 19). Jesus deseja-nos, aguarda-nos. E nós, temos verdadeiramente desejo d’Ele? Sentimos, no nosso interior, o impulso para O encontrar? Ansiamos pela sua proximidade, por nos tornarmos um só com Ele, dom este que Ele nos concede na sagrada Eucaristia? Ou, pelo contrário, sentimo-nos indiferentes, distraídos, inundados por outras coisas?

Sabemos pelas parábolas de Jesus sobre banquetes, que Ele conhece a realidade dos lugares que ficam vazios, a resposta negativa, o desinteresse por Ele e pela sua proximidade. Os lugares vazios no banquete nupcial do Senhor, com ou sem desculpa, há já algum tempo que deixaram de ser para nós uma parábola, tornando-se uma realidade, justamente naqueles países aos quais Ele tinha manifestado a sua proximidade particular. Jesus sabia também de convidados que viriam sim, mas sem estar vestidos de modo nupcial: sem alegria pela sua proximidade, fazendo-o somente por costume e com uma orientação bem diversa na sua vida.

São Gregório Magno, numa das suas homilias, perguntava-se: Que gênero de pessoas são aquelas que vêm sem hábito nupcial? Em que consiste este hábito e como se pode adquiri-lo? Eis a sua resposta: Aqueles que foram chamados e vêm, de alguma maneira têm fé. É a fé que lhes abre a porta; mas falta-lhes o hábito nupcial do amor. Quem não vive a fé como amor, não está preparado para as núpcias e é expulso. A comunhão eucarística exige a fé, mas a fé exige o amor; caso contrário, está morta, inclusive como fé.

Sabemos pelos quatro Evangelhos, que o último banquete de Jesus, antes da Paixão, foi também um lugar de anúncio. Jesus propôs, uma vez mais e com insistência, os elementos estruturais da sua mensagem. Palavra e Sacramento, mensagem e dom estão inseparavelmente unidos. Mas, durante o último banquete, Jesus sobretudo rezou.

Mateus, Marcos e Lucas usam duas palavras para descrever a oração de Jesus no momento central da Ceia: eucharistesas e eulogesas – agradecer e abençoar. O movimento ascendente do agradecimento e o movimento descendente da bênção aparecem juntos. As palavras da transubstanciação são uma parte desta oração de Jesus. São palavras de oração. Jesus transforma a sua Paixão em oração, em oferta ao Pai pelos homens. Esta transformação do seu sofrimento em amor possui uma força transformadora dos dons, nos quais agora Jesus Se dá a Si mesmo. Ele no-los dá, para nós e o mundo sermos transformados. O objetivo próprio e último da transformação eucarística é a nossa transformação na comunhão com Cristo. A Eucaristia tem em vista o homem novo, com uma novidade tal que assim só pode nascer a partir de Deus e por meio da obra do Servo de Deus.

A partir de Lucas e sobretudo de João, sabemos que Jesus, na sua oração durante a Última Ceia, dirigiu também súplicas ao Pai – súplicas que, ao mesmo tempo, contêm apelos aos seus discípulos de então e de todos os tempos. Nesta hora, queria escolher somente uma súplica que, segundo João, Jesus repetiu quatro vezes na sua Oração Sacerdotal. Como O deve ter angustiado no seu íntimo! Tal súplica continua sem cessar sendo a sua oração ao Pai por nós: trata-se da oração pela unidade. Jesus diz explicitamente que tal súplica vale não somente para os discípulos então presentes, mas tem em vista todos aqueles que hão-de acreditar n’Ele (cf. Jo 17, 20). Pede que todos se tornem um só, “como Tu, ó Pai, estás em Mim, e Eu em Ti, que eles também estejam em nós, para que o mundo acredite” (Jo 17, 21).

Só pode haver a unidade dos cristãos se estes estiverem intimamente unidos com Ele, com Jesus. Fé e amor por Jesus: fé no seu ser um só com o Pai e abertura à unidade com Ele são essenciais. Portanto, esta unidade não é algo somente interior, místico. Deve tornar-se visível; tão visível que constitua para o mundo a prova do envio de Jesus pelo Pai. Por isso, tal súplica tem escondido um sentido eucarístico que Paulo pôs claramente em evidência na Primeira Carta aos Coríntios: “Não é o pão que nós partimos uma comunhão com o Corpo de Cristo? Uma vez que existe um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos desse único pão” (1 Cor 10, 16-17). Com a Eucaristia, nasce a Igreja. Todos nós comemos o mesmo pão, recebemos o mesmo corpo do Senhor, e isto significa: Ele abre cada um de nós para além de si mesmo. Torna-nos todos um só.

A Eucaristia é o mistério da proximidade e comunhão íntima de cada indivíduo com o Senhor. E, ao mesmo tempo, é a união visível entre todos. A Eucaristia é sacramento da unidade. Ela chega até ao mistério trinitário, e assim cria, ao mesmo tempo, a unidade visível. Digamo-lo uma vez mais: a Eucaristia é o encontro pessoalíssimo com o Senhor, e no entanto não é jamais apenas um ato de devoção individual; celebramo-la necessariamente juntos. Em cada comunidade, o Senhor está presente de modo total; mas Ele é um só em todas as comunidades. Por isso, fazem necessariamente parte da Oração Eucarística da Igreja as palavras: “una cum Papa nostro et cum Episcopo nostro”. Isto não é um mero acréscimo exterior àquilo que acontece interiormente, mas expressão necessária da própria realidade eucarística. E mencionamos o Papa e o Bispo pelo nome: a unidade é totalmente concreta, tem nome. Assim, a unidade torna-se visível, torna-se sinal para o mundo, e estabelece para nós mesmos um critério concreto.

São Lucas conservou-nos um elemento concreto da oração de Jesus pela unidade: “Simão, Simão, Satanás reclamou o poder de vos joeirar como ao trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc 22, 31-32). Com pesar, constatamos novamente, hoje, que foi permitido a Satanás joeirar os discípulos visivelmente diante de todo o mundo. E sabemos que Jesus reza pela fé de Pedro e dos seus sucessores. Sabemos que Pedro, que através das águas agitadas da história vai ao encontro do Senhor e corre perigo de afundar, é sempre novamente sustentado pela mão do Senhor e guiado sobre as águas. Mas vem depois um anúncio e uma missão. “Tu, uma vez convertido…”.

Todos os seres humanos, à exceção de Maria, têm continuamente necessidade de conversão. Jesus prediz a Pedro a sua queda e a sua conversão. De que é que Pedro teve de converter-se? No início do seu chamamento, assombrado com o poder divino do Senhor e com a sua própria miséria, Pedro dissera: “Senhor, afasta-Te de mim, que eu sou um homem pecador” (Lc 5, 8). Na luz do Senhor, reconhece a sua insuficiência. Precisamente deste modo, com a humildade de quem sabe que é pecador, é que Pedro é chamado. Ele deve reencontrar sem cessar esta humildade. Perto de Cesareia de Filipe, Pedro não quisera aceitar que Jesus tivesse de sofrer e ser crucificado: não era conciliável com a sua imagem de Deus e do Messias.

No Cenáculo, não quis aceitar que Jesus lhe lavasse os pés: não se adequava à sua imagem da dignidade do Mestre. No horto das oliveiras, feriu com a espada; queria demonstrar a sua coragem. Mas, diante de uma serva, afirmou que não conhecia Jesus. Naquele momento, isto parecia-lhe uma pequena mentira, para poder permanecer perto de Jesus. O seu heroísmo ruiu num jogo mesquinho por um lugar no centro dos acontecimentos. Todos nós devemos aprender sempre de novo a aceitar Deus e Jesus Cristo como Ele é, e não como queríamos que fosse. A nós também nos custa aceitar que Ele esteja à mercê dos limites da sua Igreja e dos seus ministros.

Também não queremos aceitar que Ele esteja sem poder neste mundo. Também nos escondemos por detrás de pretextos, quando a pertença a Ele se nos torna demasiado custosa e perigosa. Todos nós temos necessidade da conversão que acolhe Jesus no seu ser Deus e ser-Homem. Temos necessidade da humildade do discípulo que segue a vontade do Mestre. Nesta hora, queremos pedir-Lhe que nos fixe como fixou Pedro, no momento oportuno, com os seus olhos benévolos, e nos converta.

Pedro, o convertido, é chamado a confirmar os seus irmãos. Não é um fato extrínseco que lhe seja confiado este dever no Cenáculo. O serviço da unidade tem o seu lugar visível na celebração da sagrada Eucaristia. Queridos amigos, é um grande conforto para o Papa saber que, em cada Celebração Eucarística, todos rezam por ele; que a nossa oração se une à oração do Senhor por Pedro. É somente graças à oração do Senhor e da Igreja que o Papa pode corresponder ao seu dever de confirmar os irmãos: apascentar o rebanho de Cristo e fazer-se garante daquela unidade que se torna testemunho visível do envio de Jesus pelo Pai.

“Desejei ardentemente comer convosco esta Páscoa”. Senhor, Vós tendes desejo de nós, de mim. Tendes desejo de nos fazer participantes de Vós mesmo na Sagrada Eucaristia, de Vos unir a nós. Senhor, suscitai também em nós o desejo de Vós. Reforçai-nos na unidade convosco e entre nós. Dai à vossa Igreja a unidade, para que o mundo creia. Amém.

Nascido em 16 de abril de 1927, Joseph Ratzinger é natural de Marktl am Inn, uma pequena vila na Baviera, às margens do rio Inn, na Alemanha, filho de Joseph, um comissário de polícia do Reich, oficial da polícia rural oriundo da Baixa Baviera e adepto de uma corrente bávaro-austríaca de orientação católica. Seu pai, era de religiosidade profunda e um decidido adversário do regime nacional-socialista. Suas ideias políticas firmes chegaram a trazer sérios perigos para a própria família. Em 1941, um dos primos de Ratzinger, um menino de catorze anos de idade com Síndrome de Down, foi morto pelo regime Nazista em sua campanha eugênica.

A senhora Ratzinger, Maria, falecida em 1963, era de procedência tiroleza, do sul da Alemanha. Maria Ratzinger era tida por boa cozinheira e havia trabalhado em pequenos hotéis. O casamento ocorreu em 1920, os filhos Maria e Georg nasceram em 1921 e 1924, Joseph nasceu num Sábado Santo e foi batizado no dia seguinte, domingo da Páscoa. A família não era pobre no sentido literal do termo, mas os pais tiveram de fazer muitas renúncias para que os filhos pudessem estudar. Em 1928, a família mudou-se para Tittmoning, na época um lugarejo de cinco mil habitantes, às margens do rio Salzach na fronteira austríaca. Em 1932, a família mudou-se novamente, agora para Aschau, de novo às margens do Inn, um povoado próspero, já que em Tittmoning, Ratzinger-pai havia se mostrado demasiado contrário aos nazistas.

Aqueles assumiram o poder em 30 de janeiro de 1933, quando Hindenburg nomeou Hitler chanceler. Nos quatro anos em que a família Ratzinger passou em Aschau, o novo regime limitou-se a espionar e a ter sob controle os sacerdotes que se lhe mostravam hostis. Ratzinger-pai não só não colaborou com o regime como ajudou e protegeu os sacerdotes que sabia estarem em perigo. Já em 1931, os bispos da Baviera haviam publicado uma instrução dirigida ao clero em que manifestavam a sua oposição às ideias nazistas. A oposição entre a Igreja e o Reich estendia-se ao âmbito escolar: os bispos empreenderam uma dura luta em defesa da escola confessional católica e pela observância da Concordata.

Em Aschau começam os primeiros vislumbres da vocação sacerdotal, o jovem Ratzinger se deixa tocar pelos atos litúgicos do povado, os quais frequenta com piedade, entrementes o avanço do novo sistema político e, com ele, a oposição da Igreja. Em fevereiro de 1937 tem lugar a Kristallnacht, em que a juventude hitlerista apredeja as vitrines das lojas dos judeus. Pouco tempo depois, Pio XI promulga a Encíclica Mit brennender Sorge, em que condena as teorias nacional-socialistas. Neste ano, seu pai, então sexagenário, aposentou-se e a família mudou-se para Traunstein.

Nos anos de ginásio em Traunstein, Joseph Ratzinger aprendeu o latim que ainda era ensinado com rigor, o que muito lhe valeu como teólogo, pode ler as fontes em latim e grego e, em Roma, durante o Concílio, comenta, foi-lhe possível adaptar-se com rapidez ao latim dos teólogos que lá se falava, embora nunca tivesse ouvido palestras nessa língua. A formação cultural com base na antiguidade greco-latina propiciada naquele ambiente “criava uma atitude espiritual que se opunha às seduções da ideologia totalitária”. Pela Páscoa de 1939, ingressa no seminário-menor em Traunstein, por indicação do pároco, para que pudesse iniciar de forma sistemática na vida eclesiástica.

Vida religiosa e acadêmica
Cardeal Ratzinger
Cardeal Ratzinger

Com o irmão, Georg Ratzinger, Joseph entrou num seminário católico. Em 29 de Junho de 1951, foram ambos ordenados sacerdotes pelo Cardeal Faulhaber, arcebispo de Munique.

A partir de 1952 iniciou a sua atividade de professor na Escola Superior de Filosofia e Teologia de Freising, lecionando teologia dogmática e fundamental. Em 1953, obteve o doutoramento em teologia com a tese “Povo e Casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho”. Sob a orientação do professor de teologia fundamental Gottlieb Söhngen, obteve a habilitação para a docência, apresentando para isto dissertação com título de “A teologia da história em São Boaventura”. Lecionou ainda em Bonn (1959 – 1963); em Münster (1963 – 1966) e em Tubinga (1966 – 1969) onde foi colega de Hans Küng e confirmou uma certa visão tradicionalista como oposição às tendências marxistas dos movimentos estudantis dos anos 60. A partir de 1969, passou a ser catedrático de dogmática e história do dogma na Universidade de Ratisbona, onde chegou a ser Vice-Reitor.

No Segundo Concílio do Vaticano (1962 – 1965), Ratzinger assistiu como peritus (especialista em teologia) do Cardeal Joseph Frings de Colônia. Foi também quem apresentou a proposta da realização da Missa em língua local em vez do latim.

Fundou em 1972, junto com os teólogos Hans Urs von Balthasar (1905-1988) e Henri De Lubac (1896-1992), a revista Communio, para dar uma resposta positiva à crise teológica e cultural que despontou após o Segundo Concílio do Vaticano.

Recebeu o título de doutor honoris causa das seguintes instituições: College of St. Thomas em St. Paul (Minnesota, Estados Unidos), em 1984; Universidade Católica de Eichstätt, em 1987; Universidade Católica de Lima, em 1986; Universidade Católica de Lublin, em 1988; Universidade de Navarra (Pamplona, Espanha), em 1998; Livre Universidade Maria Santíssima Assunta (LUMSA, Roma), em 1999 e da Faculdade de Teologia da Universidade de Wroclaw (Polônia) no ano 2000 e era ainda Membro honorário da Pontifícia Academia das Ciências.

Ascensão a bispo e cardeal

Ratzinger foi nomeado arcebispo de Munique e Freising, em 25 de março de 1977, pelo Papa Paulo VI e elevado a Cardeal no consistório de 27 de junho de 1977 com o título presbiteral de “Santa Maria da Consolação no Tiburtino”.

Em 1981, foi apontado como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa João Paulo II, cargo que manteve até ao falecimento do seu antecessor. Foi designado cardeal-bispo da Sé Episcopal de Velletri-Segni em 1993, e tornou-se Decano do Colégio Cardinalício em 2002, tornando-se o bispo titular de Ostia. Participou do Conclave de agosto de 1978 que elegeu o Papa João Paulo I e do Conclave de outubro deste mesmo ano que resultou na eleição de João Paulo II.

Era um velho amigo de João Paulo II, compartilhava das posições ortodoxas do Papa e foi um dos mais influentes integrantes da Cúria Romana. A sua posição como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cargo que exerceu durante vinte e três anos, o colocava como um dos mais importantes defensores da ortodoxia católica.

Eleição

Aos 78 anos, o Cardeal Joseph Ratzinger é eleito papa pelo colégio de cardeais. O conclave findo em 19 de abril de 2005 foi um dos mais rápidos da história, tendo apenas quatro votações e duração de apenas 22 horas. No dia 24 de abril do mesmo ano tomou posse em cerimônia na Basílica de São Pedro em Roma.[20] A fumaça branca saiu da chaminé da Capela Sistina às 17h50 daquele 19 de Abril (hora do Vaticano). O nome do cardeal alemão foi anunciado cerca das 18h40 locais, da varanda da Basílica de São Pedro, onde o novo Papa surgiu minutos depois usando o solidéu branco, aclamado por milhares de pessoas que preenchiam a Praça de São Pedro, o coração do Vaticano.
Primeira declaração

Em resposta a esse anúncio, sua primeira declaração ao público, depois de eleito Papa, foi:

“Queridos irmãos e irmãs: Depois do grande Papa João Paulo II, os senhores cardeais elegeram a mim, um simples humilde trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me o fato de que o Senhor sabe trabalhar e atuar com instrumentos insuficientes e, sobretudo, confio nas vossas orações. Na alegria do Senhor ressuscitado, confiados em sua ajuda permanente, sigamos adiante. O Senhor nos ajudará. Maria, sua santíssima Mãe, está do nosso lado. Obrigado.”

Pensamento teológico

Considerando toda a sua obra literária, as suas atitudes como sacerdote e bispo ao longo da sua vida religiosa, e ainda do que se verifica dos anos passados à frente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger possui um pensamento católico ortodoxo que, para muitos de seus críticos, é tido como sendo conservador. Bento XVI tem adotado, no seu Pontificado, propostas semelhantes às do seu antecessor relativos à moral e ao dogma católico.

Na década de 1990 o Cardeal Ratzinger participou da elaboração de documento sobre a concepção humana como sendo o momento da animação. A partir da união do óvulo com o espermatozóide temos uma vida humana perante Deus. Assim, é impossível que a Santa Sé mude sua posição diante das pesquisas com células estaminais (células tronco) embrionárias ou diante do aborto. Na verdade esperava-se que o Papa reafirmasse o Magistério constante da Igreja sobre estes e outros temas da atualidade relacionados com a Moral, a Ética e a Doutrina Social da Igreja, o que de fato ocorreu.