Na semana passada, diversos jornais do mundo publicaram a notícia do apresentador britânico Ray Gosling, que confessou na TV ter matado por piedade seu amante em estado terminal. Gosling afirmou em programa da BBC que sufocara no hospital o namorado que sofria terríveis dores por ter contraído o vírus HIV. Seu comportamento teve como motivação um pacto, selado por ambos, no qual se afirmava o suicídio assistido como solução para o sofrimento insuportável. De acordo com os noticiários, tal caso reacendeu a discussão no Reino Unido sobre eutanásia e suicídio assistido.
Como avaliar do ponto de vista da moral cristã a decisão de Gosling? Será que tal comportamento motivado pela compaixão se justifica?
Para respondermos a tais questões, devemos entender primeiramente o significado de eutanásia. Do grego eu, bom, e thanatos, morte, o termo eutanásia significa a “boa ou doce morte”. Na encíclica O Evangelho da Vida, o Papa João Paulo II afirma o seguinte: “Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma ação ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento” (n. 65). O Papa vê nessa prática um dos sintomas da “cultura da morte” e denuncia o crescimento de uma mentalidade que marginaliza as pessoas idosas, deficientes e vulneráveis. A partir de critérios de eficiência e produtividade, essas vidas são consideradas descartáveis. Sendo assim, o melhor a fazer é eliminar tais pessoas, recorrendo a argumentos, como: respeito à autonomia e direito à morte.
No entanto, antes ainda de falar do direito à morte, temos de lutar para que o direito à vida já existente seja honrado, até porque muitas vezes este maravilhoso dom é abreviado “antes do tempo”, em escala social, por causa da violência, da pobreza, da falta de recursos socioeconômicos que garantam a todos o direito não só a viver, mas a viver com dignidade. É chocante, e até irônico, constatar que a mesma sociedade que negou o pão, o emprego, a saúde, a educação, para o ser humano viver, esta mesma sociedade pretenda oferecer-lhe, como prêmio de consolação, a mais alta tecnologia para “bem morrer”.
A decisão tomada pelo apresentador britânico recai em um caso particular de eutanásia, ou seja, o suicídio assistido. Também na encíclica O Evangelho da Vida, o Papa esclarece que o suicídio, sob o perfil objetivo, é um ato gravemente imoral, “embora certos condicionamentos psicológicos, culturais e sociais possam levar (uma pessoa) a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjetiva”. A tradição da Igreja sempre recusou o suicídio como escolha gravemente má, porque “comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades (família, amigos, Igreja, trabalho etc.) de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto”. E continua o Papa João Paulo II: “No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte” (n. 66). Sendo assim, o chamado suicídio assistido, ou seja, compartilhar a intenção de alguém que quer se suicidar e ajudando-o a realizar tal ato, significa “fazer-se colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida”.
A avaliação moral da eutanásia e do suicídio assistido deverá sempre considerar que a vida humana é inviolável, ainda que marcada pelo drama da dor e do sofrimento. Ninguém, por sua própria vontade, se dá o direito a vir à existência; a vida é dom de Deus. Da mesma forma, ninguém tem o direito a matar quem quer que seja ou destruir sua própria vida. Além disso, devemos rejeitar toda e qualquer consideração utilitarista da vida humana. Explico melhor. Motivados por visões ideologizadas a respeito do significado de qualidade de vida, alguns consideram os doentes em fase terminal ou os deficientes físicos como pessoas cuja vida tem pouca ou nenhuma “qualidade”. Em tais visões, identificamos o perigo da arbitrariedade, isto é, a manipulação ideológica e indiscriminada da vida destas pessoas por parte da autoridade política ou dos profissionais da área da saúde, criando, assim, uma mentalidade favorável à cultura da morte.
Deve-se buscar sempre o verdadeiro motivo que leva alguém a pedir a morte. No fundo das várias solicitações de eutanásia e de suicídio assistido, existem profundas angústias, experiências de solidão, abandono e falta de solidariedade. O que a pessoa realmente necessita é de melhor assistência, tratamento personalizado, espiritualidade e muita ternura humana. A pessoa deve ser valorizada de modo integral, não só como um “corpo” doente, mas uma pessoa, uma filha de Deus, alguém que possui um nome, um rosto, uma história, uma dignidade a ser defendida e promovida. É fundamental que o cuidado integral em relação ao enfermo na fase terminal seja ainda mais humanizado.
Ao paciente que se encontra diante da morte iminente e inevitável, e também àqueles que estão ao seu redor – sejam familiares, amigos, profissionais de saúde –, deve ser dada toda ajuda possível para que enfrentem com naturalidade a realidade dos fatos, encarando o fim da vida não como uma doença, para qual se deva achar a cura a todo custo, mas sim como condição que faz parte do nosso ciclo natural. A fé cristã ainda possibilita ao enfermo perceber o drama do sofrimento como oportunidade de fazer comunhão com o mistério do sofrimento de Cristo, cujas chagas gloriosas são esperança de uma imortalidade feliz.
Padre Wagner Ferreira da Silva
Doutor em Teologia Moral
Formador Geral da Comunidade Canção Nova
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Qdo se fala em eutanásia lembro de um filme que me fez chorar muito…”Menina de Ouro”, o sr. viu? Chorei muito.
Já soube de casos de pessoas desenganadas pelos médicos, que retornaram de comas ditos irreversíveis, após vários anos.
Milagres, simples assim.
O tema é mto interessante, gostaria que o sr. aprofundasse, se possível.
Obrigada.
Boa noite, sua benção, Deus te guie.
ps- tava com saudades do sr. nas noites twitteiras! :-)
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Boa noite padre,sua bênção!
Muito bom ter postado no blog este assunto! É uma situação que qualquer um de nós se ainda não passamos por isso, iremos passar.
Há exatamente três semanas estou com um parente próximo na UTI em SJC desenganado pelos médicos,que já não há mais esperanças de recuperação para ele. Esta com 85 anos e só consegue respirar com a ajuda dos aparelhos.
Não tem sido fácil pra nós ver a quem nós amamos passando por tudo isso.Mas confiamos em Deus e entregamos aos seus cuidados a vida preciosa de nosso ente querido na certeza que Deus fará por ele o que for melhor.
Somos contra a Eutanásia,somos a favor da vida.
Acreditamos que só Deus tem esse direito, ninguém mais!!
Um abraço,e que Deus lha abênçoe!!!
Ola padre,
Gostaria de saber se o curso de teologia será um curso de graduação.
Iniciei Filosofia pela católica de Brasilia, EAD, porém fiz apenas o 1º semestre e parei.Na época gostaria de ter feito teologoia porém não encontrei.
Fraternal abraço,
Paulo
Nota.: Parei devido a outros compromissos financeiros,o curso em sí na Catolica de Brasilia achei muito bom.
Boa noite, querido Padre Joãoxinho
Com certeza este é um assunto muito polêmico atualmente. Concordo com o autor do texto ao enfatizar o caráter ideológico que mascara a cultura da morte como se fosse compaixão pelos que sofrem. É claro que os detentores do poder querem diminuir os gastos com quem, na visão deles, não tem mais serventia. Hoje vivemos na era da “alienação da dor”. Ninguém mais reconhece a dor como algo natural que sempre fez parte da vida humana. Transformaram a dor em algo anti-natural, que ninguém deve sentir, e se sentir, deve ser entupido de analgésicos e se estes não fizerem mais efeitos, este ser humano pode ser eliminado. Isto é um absurdo. A dor sempre foi algo inerente aos seres vivos e é impossível desfazer-se dela inteiramente. E o perigo é que estes valores relativizados, travestidos de “senso de humanidade” vão sendo passados à sociedade como “aceitáveis” e até “admiráveis”. Foi Deus quem nos deu o sopro de vida e somente Ele pode retirá-lo.
Peço sua bênção, pois estou iniciando a construção de meu TCC.
Um abraço. Deus o ilumine sempre!
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Mas, se o tratamento for muito doloroso ou com poucas chances de êxito, o paciente pode recusá-lo mesmo sabendo que tal decisão encurtará sua vida?
Padre, sinceramente, não gostaria de ficar numa cama vegetando nem me submeter a tratamentos extremamente dolorosos e pouco eficazes. Preferiria que a natureza tomasse seu curso normal.
E sobre esse rapaz aidético, ele não estava suportando mais o sofrimento, a dor. Nesta hora só tendo muita fé para suportá-la, afinal, é nela que criamos sentido para tudo isso. Esse rapaz infelizmente não criou meios para suportá-la e por isso desistiu da vida.
Sua benção.
Padre,
Meu pai morreu de câncer e todos nós sofremos as metástases dessa doença.
A fase terminal de meu pai foi vivida com muita intensidade. Intensidade de amor, carinho, compaixão… Tenho recordações muito saudosas desse tempo. Sofri muito, dores emocionais e físicas. Os cuidados com ele tornavam-se cada vez mais difíceis e meu corpo trabalhava no limite. Mas nunca, em nenhum momento cogitei uma hipótese dessa para “aliviar o sofrimento”. Lutei até o último minuto por sua vida e isso me deu grandes benefícios.
Não quero condenar ninguém nem impor o que eu acredito como verdade mas acredito que pessoas que optam pela eutanasia optam pela tristeza. Quem a solicita está em um estágio profundo de sofrimento, depressão, solidão… e quem a opera carregará isso para o resto da vida!
Sua benção padre!