Houve um tempo em que ninguém usava relógio. O tempo passava ao sabor de noites dias. Bons tempos aqueles. Mas um dia alguém inventou a tal máquina do tempo e começou nosso purgatório terreno. Passamos a confundir a vida com a complicada matemática do tempo. Inicialmente havia apenas os relógios públicos, normalmente nas torres das Igrejas. Raramente olhávamos para eles. Mas alguém democratizou a tragédia. Logo colocaram um relógio na sala, com o “simpático cuco”, na cozinha, nos anfiteatros e em todo lugar. Impossível passear pela cidade e não ver as horas. O encanto pela máquina de contar minutos levou o inventor a privatizar o tempo criando o relógio de bolso. Ele tinha todo um charme com sua corrente de ouro. Olhar as horas tornou-se um verdadeiro rito. Parecia que o relógio havia atingido o máximo da perfeição. Ledo engano. Dizem que nosso genial Santos Dumond foi quem teve a idéia de transferir o relógio do bolso para o pulso. Nem chegou a registrar a invenção. Em questão de meses todos tinham relógio deste tipo. Era o presente preferido para o filho adolescente. Tornou-se rito de passagem para a idade adulta ganhar seu primeiro relógio. Isso não durou muito. Em pouco tempo os modelos se diversificaram: relógio de criança, de homem, de mulher, de esportes, de ponteiro, eletrônico, com números de telefones. Mas temos mesmo que andar com esta geringonça pendurada no pulso? Estes dias a pulseira do meu velho relógio de plástico quebrou. Por “falta de tempo” para consertar deixei o objeto em um canto. Passaram-se os dias e não senti a mínima necessidade de colocar novamente minhas “algemas”. Comecei a observar que os relógios continuam lá… em todos os lugares. Entro no carro e vejo as horas no painel; ligo o computador e lá estão os minutos no monitor; ando pelo corredor e vejo as horas em mil paredes. Para finalizar, comecei a me dar conta que o celular também é um relógio. Retomei, então, o hábito do velho e bom relógio de bolso, só que com o celular. Pensando bem… por que mesmo tenho que andar com um relógio no pulso? Nem sequer sou piloto de aviões como Dumond. Libertas quae sera tamen.
Por Dom Jesús Sanz Montes, ofm, arcebispo de Oviedo
OVIEDO, sexta-feira, 12 de março de 2010 (ZENIT.org).- Apresentamos a meditação escrita por Dom Jesús Sanz Montes, OFM, arcebispo de Oviedo, administrador apostólico de Huesca e Jaca, sobre o Evangelho deste domingo (Lucas 15, 1-3.11-32), 4º da Quaresma.
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Era uma cena complicada, que Jesus resolverá com uma parábola impressionante. Em volta dele aparecem os publicanos e pecadores, por um lado (o filho mais novo), e os fariseus e letrados por outro (o filho mais velho). Mas o protagonismo não recai nos filhos nem naqueles que os representam, mas no pai e em sua misericórdia.
A breve explicação da vida desenfreada do filho menor, a forma como ele cai em si e o resultado final da sua frívola fuga têm um término feliz. É surpreendente a atitude do pai no encontro com seu filho, descrita com intensidade nos verbos que desarmam os discursos do seu filho, indicando a tensão do coração misericordioso desse pai: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos”.
O erro que o conduziu à fuga rumo às miragens de uma falsa felicidade e de uma escravizante independência será transformado pelo pai em encontro de alegria inesperada e desmerecida. A última palavra dita por esse pai sobressai a todas as penúltimas ditas pelo filho, é o triunfo da misericórdia, da graça e da verdade.
Triste é a atitude do outro filho, cumpridor, sem escândalos, mas ressentido e vazio. Se ele não pecou como seu irmão, não foi por amor ao pai, mas por amor a si mesmo. Quando a fidelidade não produz felicidade, não se é fiel por amor, mas por interesse ou por medo. Ele havia permanecido com seu pai, mas sem ser filho, colocando um preço ao seu gesto. Pôde ter mais do que exigia sua mesquinha fidelidade, mas seus olhos lerdos e seu coração duro foram incapazes de ver e de se alegrar. “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”, disse-lhe o pai. Tendo tudo, ele se queixava da falta de um cabrito.
Quem vive calculando, não consegue entender, nem sequer consegue ver o que lhe é oferecido gratuitamente, em uma quantidade e qualidade infinitamente maiores que sua atitude tacanha pode esperar.
A trama desta parábola é a trama da nossa possibilidade de ser perdoados. Como disse Péguy, Deus, com esta parábola, foi aonde nunca antes se havia atrevido, acompanhando-nos com esta palavra muito além do que nos acompanha com outras palavras também suas. O sacramento da Penitência, que recebemos especialmente nestes dias quaresmais, é o abraço desse Pai que, vendo-nos em todas as nossas distâncias, aproxima-se de nós, nos abraça, nos beija e nos convida à festa do seu perdão, com uma misericórdia sem fim.