Pe. Joãozinho, scj

 No seu recente livro Ave Maria (Editora Planeta, 2019), O Papa Francisco retoma uma bela imagem da aurora do cristianismo utilizada por Santo Irineu (130 – 202 d.C) “O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; aquilo que a virgem Eva atara com a sua incredulidade, desatou-o a virgem Maria com a sua fé” (Adversus Haereses III, 22, 4). Provavelmente essa é a origem remota da devoção a Nossa Senhora Desatadora dos Nós.

A frase é tão forte que atravessou dois mil anos de história e entrou no texto do Concílio Vaticano II: “Maria, filha de Adão, dando o seu consentimento à palavra divina, tornou-se Mãe de Jesus e, não retida por qualquer pecado, abraçou de todo o coração o desígnio salvador de Deus, consagrou-se totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela graça de Deus onipotente o mistério da Redenção. Por isso, consideram com razão os santos Padres que Maria não foi utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens. Como diz Santo. Ireneu, ‘obedecendo, ela tornou-se causa de salvação, para si e para todo o gênero humano’. Eis porque não poucos Padres afirmam com ele, nas suas pregações, que ‘o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a virgem Eva atou, com a sua incredulidade, desatou-o a virgem Maria com a sua fé’; e, por comparação com Eva, chamam Maria a ‘mãe dos vivos’ e afirmam muitas vezes: ‘a morte veio por Eva, a vida veio por Maria’” (Lumen gentium 56).

Mas o que significa isso? O Papa Francisco com simplicidade profunda nos ajuda a entender numa das mais belas respostas dadas ao padre Marco Pozza no livro Ave Maria: trata-se do “nó da desobediência, o nó da incredulidade. Poderíamos dizer, quando uma criança desobedece à mãe ou ao pai, que se forma um pequeno ‘nó’. Isto sucede, se a criança age sabendo o que faz, especialmente se existe aí pelo meio uma mentira; naquele momento, não se apóia na mãe e no pai. Sabeis que isto acontece tantas vezes! Então a relação com os pais precisa ser limpa desta falta e, de fato, pede-se desculpa para que haja de novo harmonia e confiança. Algo parecido acontece no nosso relacionamento com Deus. Quando não O escutamos, não seguimos a Sua vontade e realizamos ações concretas em que demonstramos falta de confiança n’Ele – isto é o pecado –, forma-se uma espécie de nó dentro de nós. E estes nós nos tiram a paz e a serenidade. São perigosos, porque de vários nós pode resultar um emaranhado, que vai se tornando cada vez mais penoso e difícil de desatar.  Mas, para a misericórdia de Deus – sabemos bem –,   nada é impossível! Mesmo os nós mais complicados desatam-se com a sua graça. E Maria, que, com o seu ‘sim’, abriu a porta a Deus para desatar o nó da desobediência antiga, é a mãe que, com paciência e ternura, nos leva a Deus, para que Ele desate os nós da nossa alma com a sua misericórdia de Pai. Cada um possui alguns destes nós, e podemos interrogar-nos dentro do nosso coração: Quais são os nós que existem na minha vida? ‘Mas padre, os meus nós não podem ser desatados’! Não, isto está errado! Todos os nós do coração, todos os nós da consciência podem ser desatados. Para mudar, para desatar os nós, peço a Maria que me ajude a ter confiança na misericórdia de Deus? Ela, mulher de fé, certamente nos dirá: ‘Siga em frente, vá até ao Senhor: Ele entenderá você’. E Ela nos leva pela mão, Mãe, Mãe, até ao abraço do Pai, do Pai da misericórdia”.

Exatamente por isso a Tradição da Igreja aprendeu a proclamar Maria como “Mãe de Misericórdia”. A Salve Rainha é uma dessas preces que repousa no coração do povo e acorda diariamente em seus lábios, principalmente ao final da recitação do Terço. Se pensarmos no seu autor, em torno do ano mil, entenderemos o sentido de cada palavra: Herman Contract (1013-1054). Nasceu com todas as doenças que se pode imaginar, inclusive com o palato do céu da boca fendido, o que o impedia de falar. Sua mãe o consagrou a Maria logo ao nascer. Mas a criança aparentemente não iria sobreviver. Foi entregue aos cuidados de um orfanato em um mosteiro. Tornou-se um milagre vivo. Além de se tornar monge e aprender a falar diversos idiomas foi compositor, matemático, poeta, escritor, historiador, musicólogo, teórico musical, astrônomo. Assim, entende-se o “gemendo e chorando nesse vale de lágrimas”, mas com a fé e confiança de que Maria nos “mostra para Jesus”. Cem anos depois, Bernardo de Claraval completou a prece de modo genial e definitivo: “ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria”.

            Além disso, a palavra “misericórdia”, na sua origem hebraica – Rahamin – significa literalmente “útero”. Maria é para nós o reflexo humano de um Deus Materno que nos gera para a vida. No seu colo encontramos o colo misericordioso de Deus. Ela nos representou diante do céu naquele dia em que o anjo Gabriel lhe fez a proposta para ser a mãe do Filho do Altíssimo. “Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em segundo a sua promessa” (Lc 1,38). E foi aberta na terra a porta para o céu. Foi um sim totalmente livre, pois Maria não estava refém do pecado original: foi concebida imaculada. Era tão livre quanto nossos primeiros pais. Mas, ao contrário deles, ela disse SIM. Esse foi o seu principal ato de misericórdia.

            Naquele momento Maria ficou grávida de Deus. Em seu ventre foi gerado o Cristo todo: totalmente Deus e totalmente homem, como diria muito depois o Concílio de Calcedônia (451 d.C). O divino assumiu completamente o humano para nos redimir. Como havia dito Santo Irineu: “O que não foi assumido, não foi redimido”. O colo de Maria se tornou o sacrário desse mistério de salvação. Ali dentro, em Jesus Cristo, não era mais possível separar o que é humano do que é divino. Por isso a liturgia cristã, aos poucos começou repetir poemas em que reconhecia Maria como “Theotokos”, que a partir da tradução latina costumamos dizer em português: “Mãe de Deus”. Literalmente seria “portadora de Deus“. Oficialmente a Igreja levou um pouco mais de tempo para reconhecer essa verdade como dogma: apenas no Concílio de Éfeso, em 431, sob forte pressão popular.

            Por todos os lados que olhamos, Maria sempre aparece como aquela que reconcilia. Se retomarmos o primeiro texto cristão que faz referência a uma mulher, que depois seria identificada com o nome de Maria, veremos que o contexto é de salvação, reconciliação. Trata-se do versículo 4 do capítulo 4 da Carta de São Paulo aos Gálatas, utilizado por São João Paulo II logo no primeiro número de sua belíssima carta Redemptoris Mater: “A Mãe do Redentor tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adoção de filhos. E porque vós sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abbá! Pai!’” (Gálatas 4, 4-6). Se olharmos um texto bem recente, no capítulo 8 da Lumen gentium, dedicado à Maria, teremos algumas pérolas que vale ressaltar: Maria “Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira. Mas isto entende-se de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo”.

         Portanto, podemos segurar nas mãos de Maria e pedir abrigo no seu colo. Ela nos protegerá em nossas angústias, desafios e tristezas e ao chegar perto da mãe sempre nos encontraremos com seu Filho. É sempre assim: a mãe leva para o filho. Não é possível separar. Algo de nossas mães estará eternamente em nós. E apenas para citar um poema lapidar de Pe. Zezinho, scj: “Em cada mulher que a terra criou, um traço de Deus, Maria deixou, um sonho de mãe Maria plantou”. Fomos gerados no ventre de Maria com Jesus Cristo. Somos membros do seu corpo Místico. Por isso, reconhecemos Maria como Mãe da Igreja e mãe de cada um de nós.



   Podemos agora rezar uma das mais antigas preces marianas das história:

Português

À vossa proteção recorremos,
Santa Mãe de Deus.
Não desprezeis as nossas súplicas
em nossas necessidades,
mas livrai-nos sempre
de todos os perigos,
ó Virgem gloriosa e bendita.
Amém.


Latim

Sub tuum praesidium confugimus,
Sancta Dei Genetrix.
Nostras deprecationes ne despicias

in necessitatibus,
sed a periculis cunctis

libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.
Amen.

Pe. Joãozinho, scj

 

Tudo começou quando a editora Planeta me convidou para fazer a revisão técnica do primeiro livro do papa Francisco “O nome de Deus é misericórdia”. Logo percebi que o papa tinha um estilo bastante pessoal e colocava poesia nas palavras. Não bastaria traduzir. Era preciso fazer uma versão, mais ou menos como fiz com tantas canções estrangeiras que hoje o povo canta como se tivessem nascido aqui no Brasil. Ao ler aquele livro uma pessoa comentou: “Parece que estou ouvindo o papa falar”. Tinha dado certo.

Em seguida vieram outros livros. A partir de “Deus é jovem” foi-me confiada também a tradução. Depois veio o “Pai Nosso”, “É proibido reclamar” (prefácio do papa Francisco) e finalmente este clássico: “Ave Maria”, em co-edição com Paulus.

Pai Nosso e Ave Maria são livros irmãos. Sempre sugiro que sejam lidos um após o outro. São duas entrevistas que o papa concedeu a um sacerdote do norte da itália chamado Marco Pozza. Além de ser um jovem doutor em teologia, ele é capelão do Presídio de Pádua, no norte da Itália. Escritor fecundo possui um programa de televisão. Em uma das temporadas arriscou o convite e o papa aceitou. Foram alguns encontros gravados que depois o entrevistador editou e submeteu à aprovação dos santo padre.

No livro Ave Maria o papa comenta a prece que aprendemos no colo da mãe, palavra por palavra. Chama a atenção o modo como ele faz a leitura de Maria como uma mulher normal e inserida na cultura do seu tempo. Outro detalhe interessante é a importância que ele dá para o carinho que existia entre Maria e José. Impossível não se encantar pela maneira simples e sábia com que o Papa Francisco descreve a família de Nazaré.

O livro é estruturado sempre em dois capítulos sobre cada tema. O primeiro é uma conversa entre o papa Francisco e o Pe. Marco Pozza e o segundo é uma reflexão feita pelo papa sobre esse assunto e extraída de alguma de suas catequeses. O resultado é um livro de leitura rápida e saborosa.

Os assuntos mais complicados para os teólogos são abordados com coragem e simplicidade pelo papa Francisco de modo que mesmo os que não têm formação teológica compreendem com clareza. É o caso de Maria “cheia de graça” ou “mãe de Deus” e “intercessora”.

A linguagem é clara e direta mas cheia de ternura. O papa fala de sua mãe e de sua avó. Lembra episódios de sua infância e explica a Ave Maria por meio de verdadeiras “parábolas do quotidiano”. Até ao falar da morte o papa não perde o bom humor, contando a história de um bispo em estado terminar, já em coma, mas que se negava a morrer. O que aconteceu? Bem… é necessário ler o livro. Só vou fazer um pedido. Leia em prece. Ao final de cada capítulo reze com sabor uma Ave Maria. E, ao rezar, não se esqueça de lembrar de mim em sua oração. Rezarei por você também.