Deus, Pai das Misericórdias

Paulo escreveu a segunda carta aos Coríntios depois de sair de uma provação que o tinha “acabrunhado ao extremo” (2 Cor 1,8). E começa a carta agradecendo a Deus tê-lo como que ressuscitado da morte (2Cor 1,9): “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, O Pai das misericórdias e Deus de toda consolação. Ele nos consola em todas as nossas tribulações!” (2Cor 1,3-4). Deus é o Pai, o Pai de Jesus salvador; poderia ele não ser misericórdia para aqueles que se acham na angústia?

Já o Deus do Sinai, cuja majestade, não obstante, era temível, se revelara a Moisés como um Senhor de bondade e de misericórdia: “Iahweh passou diante dele (de Moisés) e ele exclamou: ‘Iahweh! Iahweh! (…) Deus de compaixão e de piedade, lento para cólera e cheio de amor e fidelidade’ (Ex 34,6).

Para celebrar essa misericordiosa ternura, a Bíblia hebraica dispunha de uma gama de termos, cada um dos quais rico de muitos harmônicos. Deus é hesed: é bondade, fidelidade benevolente misericórdia que perdoa. Essa bondade impeliu-o a fazer aliança com Israel; por causa dela, ele a guarda fielmente, apesar das faltas do povo, porque a hesed de Deus é maior que a traição dos homens: “Eu te amei amor eterno, por isso conservei para ti o meu amor” (Jr 31,3).

A ideia de fidelidade contida na hesed toma-se explícita na fórmula hesed e emet: “Eu dou graças ao teu nome por tua benevolência e tua fidelidade (…) Quando gritei, tu ouviste”. Se Deus é bondade e fidelidade, não é em resposta aos méritos de Israel, porque a história do povo era tecida de infidelidade: “Não é em consideração a vós que ajo assim, mas por causa do meu santo Nome” (Ez 36,22).

O termo rachamim confere à benevolência caráter de ternura quase carnal. Esse termo deriva de rechem, que designa o seio materno: “Por acaso, uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem, eu não me esqueceria de ti!” (Is 49,15). “Minhas entranhas se comovem (por Efraim). Sim, eu o amo, eu o amo” (Jr 31,20). Poderíamos traduzir: “Por ele minha ternura transborda”, ou: “Tenho piedade dele, sim, muita piedade”. Uma vez que Deus é Pai, isso se explica: “Será Efraim para mim filho tão querido, criança de tal forma preferida?” (Jr 31,20).

Clemência cheia de piedade, misericórdia inclinada sobre a miséria se exprimem pelo termo hen: “Em tua grande compaixão, não os exterminaste, nem os abandonaste, pois és Deus cheio de piedade e compaixão”.

O leque da bondade e da ternura se abre completamente no coração de Deus. Ele “ama com generosidade” (Os 14,5). Pai do povo, Deus se comporta também como mãe: “Fui eu, contudo, quem ensinou Efraim a caminhar, eu o tomei em meus braços (…)”. Se acontece que o rosto de Deus se enrubeça de cólera, é por um instante, ao passo que a bondade dura sempre. Não é a cólera, mas a bondade que é própria de Deus: “Não executarei o ardor de minha ira, não tornarei a destruir Efraim, porque eu sou Deus e não homem, eu sou santo no meio de ti, não retornarei com furor” (Os 11,9)

A misericórdia celebrada pela Bíblia da primeira aliança tinha por fonte a paternidade de Deus em relação a Israel; mas essa paternidade era, em primeiro lugar, a de Deus em relação ao Único. Conforme 2 Cor 1,3, é o “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” que é “o Pai das Misericórdias”. E certo que “ele não poupou seu próprio Filho” (Rm 8,32); não obstante, é para ele, em primeiro lugar, que Deus é misericórdia e consolação, ele “que consola os humildes” cf. 2 Cor 7,6). Na extrema angustia do Filho de seu amor, no extremo distanciamento no qual ele “foi feito pecado por causa de nós” (2 Cor  5,21), ele o cumula com o oceano de suas misericórdias e o ressuscita na infinita consolação do Espirito Santo.

Foi no Filho que “se manifestaram a bondade de Deus, nosso salvador, e seu amor aos homens (cf. Tt 3,4); as misericórdias de Deus transbordam sobre os homens, a partir dele. Segundo os sinópticos, Jesus fez suas obras de poder não tanto para provar sua missão quanto por piedade e foi precisamente a piedade que autenticou sua missão (cf. Lc 4,J8s). Porque a honra de Deus está na misericórdia: “Aprendei o que significa: misericórdia é que eu quero, e não sacrifício”.

A misericórdia se manifesta em toda a sua generosidade quando se exerce perdoando. Jesus vai à procura do pecador (Lc 15,2), porque Deus, do qual ele é o representante, não aceita que seu filho desgarrado se perca. Ele é como o homem da parábola, que espreita a volta do filho pródigo e cujas entranhas se comovem à vista de sua miséria: “Encheu-se de compaixão” (Lc 15,20). O termo grego fala de agitação das entranhas.

Houve um homem – chamava-se Paulo – que fora “blasfemo, perseguidor, insolente”. Mas “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. Se me foi feita misericórdia, foi para que em mim, primeiro, Cristo Jesus demonstrasse longanimidade” (ITm 1.13-16). Sendo infinita, a misericórdia chega aos limites extremos.

 Paulo “perseguira sobremaneira e devastara a Igreja de Deus” (cf.  G1 1 13); perseguira Deus em seu Filho e em sua Igreja “reunida em Deus Pai” (cf. ITs 1,1). Ora, eis que o Deus perseguido se apresenta a ele em “sua paternidade, “se compraz em revelar-lhe seu Filho” Gl 1,15s), concede-lhe perdão superabundante (ITm l,14), confia-lhe uma missão com a qual a do próprio Moisés não tem nada que e comparar (2Cor 3,7-11) e o associa a s. para tornar o Filho conhecido (G1 1,16) e até para gerá-lo nos corações dos homens!

Se Deus é Pai essencial, se seu poder criador se exerce na geração do Filho, quem poderá saber de que é capaz essa onipotência amorosa em relação ao homem, até ao mais afundado no pecado? Deus revela isso a nós, para que os homens não abusem de sua misericórdia. É verdade que, para converter o homem, ele jamais violará a liberdade que deu; mas, em seu pecado, age o homem com plena liberdade? São Paulo reconhece que não foi por pura malícia que pecou; “Ele usou t misericórdia comigo, porque agi por ignorância” (ITm 1,13). Ofercia-se, pois, um espaço à onipotência misericordiosa, permitindo-lhe introduzir-se no coração de Paulo.

É necessário, contudo, o temor do Senhor, também em face a esse Deus cuja misericórdia não tem fim. Mas qual é esse temor? Em face a Deus que gera seu Filho por nós, é necessário temer fechar-se à sua misericordiosa paternidade. Ora, a confiança é que se abre e acolhe. O homem que se entrega a seu Pai na confiança ilimitada é o que tem o verdadeiro temor do Senhor.

Referencia

DURRWELL, Francois Xavier. O Pai, Deus em Seu Mistério. 1ª ed. Paulinas. São Paulo, 1990.

Diac. Leandro Couto
Comunidade Canção Nova