A misericórdia de Maria perante a amargura da Lúcia

Na segunda Memória, a Lúcia conta a sua despedida de Fátima e a última visita que fez aos diversos lugares “onde o bom Deus tinha começado a obra da Sua misericórdia”. Não esconde que o fez “com o coração esmagado de saudades” (Memorias, 96). Foi preciso esperar pela sua morte para conhecermos o que se passou nessa despedida: uma nova visita da Mãe do Céu. No seu diário, ainda não publicado, dirige-se a Maria, dizendo-lhe:

“Foste tu a que me tomaste pela mão e me conduziste os passos. Sim, mais de uma vez, vieste à terra para indicar-me o caminho. Sem ti, teria perdido o norte e desviado a senda. Foi no dia 15 de Junho de 1921, viste a minha luta, a indecisão e o arrependimento do sim que antes tinha dado, a incerteza do que iria encontrar, a resolução de voltar atrás. O conhecimento do que deixava, e saudade a desgarrar-me o coração! (…) Deixar tudo e a casa paterna, por uma incerteza do que iria encontrar, oprimia-me o coração e fazia-me pressentir o que nem queria pensar!… Podia lá ser? – perguntava a mim mesma. Não, digo a minha Mãe que não quero ir e com não aparecer amanhã em Leiria tudo está resolvido (…) Não mais voltar a pisar esta terra abençoada, para ir sabe Deus para onde, sem nem sequer poder escrever diretamente para a minha mãe! Impossível, não vou!

E foi entre esta multidão de pensamentos sombrios que percorri o caminho desde a igreja de Fátima, onde de manhãzinha cedo fui para assistir à Santa Missa e comungar por despedida, até à Cova de Iria. Aí ajoelhada e debruçada sobre a pequena grade que resguardava a terra que tinha alimentado a feliz carrasqueira onde Nossa Senhora poisou os seus imaculados pés, deixei as lágrimas correr em abundância enquanto que pedia a Nossa Senhora perdão de não ser capaz de lhe oferecer, desta vez, este sacrifício que me parecia superior às minhas forças. (…)

Nesse momento, bem longe estava eu de pensar num novo encontro, nem no cumprimento da promessa: ‘Voltarei aqui, uma sétima vez”. Tinhas tantos mais dignos do que eu a quem podias manifestar-Te! Mas não é aos filhos mais pequeninos e necessitados que as mães socorrem em primeiro lugar? Por certo que, desde o Céu, o Teu maternal olhar me seguia os passos e no espelho imenso da luz que é Deus, viste a luta daquela a quem prometeste especial proteção. ‘Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus’.

Assim solícita, mais uma vez desceste à terra, e foi então que senti a Tua mão amiga e maternal tocar-me no ombro; levantei o olhar e vi-te, eras Tu, a Mãe Bendita a dar-me a Mão e a indicar-me o caminho; os teus lábios descerraram-se e o doce timbre da tua voz restituiu a luz e a paz à minha alma: ‘Aqui estou pela sétima vez, vai, segue o caminho por onde o Senhor Bispo te quiser levar, essa é a vontade de Deus’.

Repeti então o meu ‘sim’, agora bem mais consciente do que o do dia 13 de Maio de 1917 e, enquanto que de novo Te elevavas ao Céu, como num relance, passou-me pelo espírito toda a série de maravilhas que naquele mesmo lugar, havia apenas 4 anos, ali tinha sido dado contemplar. Recordei a minha querida Nossa Senhora do Carmo e nesse momento senti a graça da vocação à vida religiosa e o atrativo pelo Claustro do Carmelo. (…)

E como se a mim, se me tivesse dito as palavras dirigidas pelo Anjo ao profeta Elias: ‘Levanta-te que ainda tens um grande caminho a percorrer’. Fui continuar a minha peregrinação de despedida. (…) A saudade apertava como um punhal a cravar-se-me no coração, mas prometi, é preciso ser fiel! Renovo o meu ‘sim’ e chamo para me ajudar o eu querido Anjo da Guarda e o Anjo de Portugal, precursor da Virgem Mãe.

No dia seguinte, 16 de Junho de 1921, (…) na companhia da minha querida mãe, que estava bem longe de suspeitar a luta que no meu coração se tratava, como outro Abraão que sobe a montanha para oferecer a Deus o filho Isaac, pomo-nos a caminho passando pela Cova da Iria para aí rezar o meu rosário, de despedida. Quando este terminou, ao pormo-nos de novo em marcha, fiquei algo para trás, voltei-me para dizer o meu último adeus, e … vi um vulto de luz – tive a impressão de que era a querida Mãe do Céu a inspirar-me coragem e a dar-me a sua bênção maternal (…).

Às 2 horas da tarde, estava na estação de Leiria a dar a minha mãe o abraço de despedida, que, mergulhada em lágrimas e como sempre torturada pela dúvida, me despediu dizendo: ‘Vai, filha, que, se é verdade que viste Nossa Senhora, Ela te guardará, mas se tu mentiste, então vais ser uma desgraçada’. E cumpriu-se a profecia da minha querida mãe, Nossa Senhora tem-me defendido, conduzindo-me os passos”.

Neste relato da ajuda materna de Maria vemos claramente uma experiência de misericórdia divina que vem ao encontro dos fiéis nas suas amarguras para os amparar.