Como poderá o perdão traduzir a reparação? Que tem uma realidade que ver com a outra? Mais uma vez, poderemos olhar esta relação nas duas direções que a compõem, e igualmente nos atores. Se reparar supõe parar para refazer algo que foi desfeito, a reparação então começa no reparado enquanto reparador. Tenho de parar para olhar para mim mesmo, para reparar em mim. Só nessa altura estarei disposto e aberto ao olhar do Outro que desde sempre repara em mim e me quer reparar. Neste contexto é possível então falar de duas direções no processo de reparação, como foi afirmado, o que pressupõe dois pontos de partida: um de nós para Deus e outro de Deus para nós. No fundo, reabilitamos aqui todo o processo de mediação sacerdotal no Antigo Testamento e na vida cristã.
O mediador é aquele que está no meio, que leva o mundo até Deus e que traz Deus para habitar o mundo. Nestas duas direções podemos parar para olhar para Deus ou contemplar a paragem de Deus que olha, que repara em nós para reparar a nossa vida com a sua graça. Nestas duas direções é delineado um percurso de reconhecimento do pecado como condição de perdão, porque ao reparar na nossa condição de pecado abro caminho para a reparação do mesmo através do perdão. Nesse momento desejo buscar um perdão que é constante e que repara a minha relação ao mundo e a Deus. Sendo assim, também podemos então contemplar o perdão de Deus sempre prévio ao pecador para o reparar, para o reconstruir, pelo que podemos aí contemplar essa mesma condição que repara o meu pecado. Desta forma poderemos falar em duas direções delineadas neste percurso de reconhecimento: uma de nós que se inicia quando nos damos conta do nosso pecado, e outra da parte de Deus que desde sempre (re)conhece que somos pecadores e indigentes da sua misericórdia que repara o nosso pecado.
Nestas duas direções, para ser reparado, para ser notado por Deus tenho de deixar que Ele me repare, é necessário reconhecer o mal cometido para, com essa consciência, construir um caminho outro. Isto supõe a anuência da liberdade, o consentimento, o reconhecimento da nossa condição de pecadores. Só então o perdão de Deus será reparador, isto é, eficaz pois ao perdoar, ao dar por esse gesto de graça (gratuito) a sua graça e uma nova chance, está a reparar uma relação dilacerada, pelo que em última instância o Reparador acaba por ser Aquele que inicia e conclui o processo. Nós continuamos no meio como mediadores, e Deus só pode perdoar se efetivamente vir que nos arrependemos e que queremos mudar de vida, refazer as contas da história, recompor o que destruímos. É o que acontece também com os sacramentos que só são eficazes se não impusermos óbice, se a nossa liberdade consentir. Sem mostrarmos que queremos reconstruir o que desfizemos não há perdão eficaz. Ele existe em Deus mas a nossa liberdade impede-o de se tornar eficaz, é contumaz quando quer deixar tudo como estava antes. Este processo que acontece na relação cristã entre o crente e Deus replica-se na relação fraterna e replica-se agora na reciprocidade das direções das relações interpessoais, pois se existe a violação de um dos mandamentos da lei de Deus, sobretudo a partir do quarto, só conseguimos manter a relação com base na confiança e na gratuidade. Isto acontece mesmo ao nível social. O mundo só funciona por causa da gratuidade nossa e de todos, que permanentemente está a “olear a máquina”, a reparar os atropelos e as injustiças.
Para que a sociedade sobreviva é necessário o perdão para reparar as relações interpessoais, o que faz então com que o reconhecimento da necessidade de reparação seja a condição para o perdão e para a própria sobrevivência. Individual, comunitária e socialmente é necessário refazer o que foi desfeito, é necessária a reparação do pecado cometido para que aconteça o perdão e para que consigamos continuar a viver em sociedade, não na base da violência e da competição como pensaram os ideólogos do estado moderno como Hobbes (1588-1679). Esta é a condição de perdão, perdão que permanece sempre gratuito, mas que como gratuito que é precisa sempre do consentimento da liberdade. Isto abre sempre então o lugar à esperança, e deixa o futuro nas nossas mãos. Podemos mudar o caminho dos acontecimentos, o que torna a vida muito mais bela e livre, pois não há fatalismos nem destinos, mas graça e liberdade. Este é o jogo da vida, e este jogo torna a vida humana sempre reparável e sempre perdoável, primeiro por Deus e depois pelos irmãos.
Texto – José Carlos Carvalho