O amor de Deus é. O amor de Deus nos faz SER. - Parte I

De Deus, dizem-se tantas coisas. Por isso, como sugere E. Salmann, «deveremos ouvir o coro imen­so dos gritos, das orações e das blasfémias, das invocações e das conclusões filosóficas, a gaguez e a eloquência que acompanham esta palavra»: Deus.

Hoje, para muitos Deus é indiferente, vazio, irrelevante. Para outros, continua a ser imprevisível e ameaçador. Por Ele se morre e por Ele ainda se mata. Às crianças diz-se que é amigo. Há quem diga que, por ser Absoluto, é insensível a qual­quer afeto e desligado de qualquer laço. Já se disse que é motor imóvel – sem se mover, tudo põe em movimento. É possível que seja o Sumo bem e a Suma beleza, modelo perfeitíssimo e puro que fascina e que atrai, ainda que intocável e inalcançável. Ouvimos dizer, também, que é causa de si mesmo e que subsiste só por si. Que é espaço amorfo, ambiente materno, o nada onde seremos tudo ou o tudo onde seremos nada. Que é projeção das nossas ambições e dos nossos medos. Sendo tanto e tantas coisas, para uns, é demasiado. Para outros, é demasiado pouco. É abstrato e distraído, afastado e apático. É coisa sempre à mão e é fetiche. É fascinante e é tremendo.

Dito tudo isto, entre o muito mais que poderíamos dizer, há ainda perguntas que permanecem. Se Deus fosse mera explicação para o que ainda não sabemos, mereceria o melhor de nós mesmos? Se não fosse mais do que o resultado argumentativo da nossa inteligência ou do que a magia de um momento gratificante ou do que o fugaz arrepio da alma, mereceria que lhe entregássemos todo o nosso afeto? Se fosse a resposta predefinida para todos os problemas, o tapa-buracos da nossa incompreensão dos mistérios do universo e da existência, mesmo que animando a mente, poderia reconfortar a vida? E se fosse uma espécie de mãe galinha que abafa as suas crias, não lhes deixando espaço para o respiro e o crescimento, poderíamos sentir-nos livres na sua presença e confiar na gratuidade dos seus dons? Se fosse omnipotente como são os reis poderosos ou man­dão como são os pais tiranos, não nos levaria a fugir à primeira oportunidade? Se Deus não esti­vesse nos inícios como bênção e se não acompanhasse o caminho real dos homens e mulheres que existem, através dos abismos e das fraturas da sua humanidade, e se não abrisse a possibilidade de uma esperança que reconforte o coração, depois de uma difícil e longa jornada, como poderíamos confiar n’Ele e como poderíamos confiar-nos a Ele? Outra coisa é se Deus for dádiva de si e que, por isso, cria o mundo e o aprecia na sua diferença e gera a vida na vida de cada um, também na daqueles que o olham com indiferença e, até, com inimizade, e a aprecia ainda mais; se for ternura que deseja a alegria e que abençoa a inventividade humana; se for descrição da liberdade que dá tempo ao tempo de cada um, que dá a palavra para que cada um chegue dizer-se e as capacidades para que venha a ser o que pode ser; se for afeto que sacia o desejo mais íntimo de relações justas e que gera um laço ajustado de mútuo reconhecimento… Se for assim, então, Deus acabará por encontrar lugar no melhor de nós mesmos e o desejo de vida que há em nós chegará a reconhecer-se salva-guardado n’Ele e por Ele.

E o humano? Hoje, como no passado, direta ou indiretamente, continuamos a perguntar pela ver­dade da nossa humanidade e do desejo que nos move, pela razão da nossa origem e pelo sentido do nosso destino, pela forma ideal do bem e pelo sentido da liberdade. O diagnóstico, também aqui, seria múltiplo. Ainda assim, poderíamos destacar um traço do ambiente cultural que parti­lhamos, que, creio, é motivo bastante para nos deixar apreensivos.

 

O teólogo P. Sequeri identifica a figura mitológica de Prometeu como representativa do homem e da mulher modernos, aquele que rouba o fogo aos deuses para o dar aos homens. Desafia o limite, violando a proibição e rompendo o encantamento de divindades ciumentas. O resultado é o castigo. Também Dionísio poderia avançar traços marcantes do ideal moderno, mas pela faceta da celebração da força da vida e das forças vitais da natureza. Assim, vai, também ele, ao encontro da sua destruição. Fica-lhe, porém, o prazer de se jogar na vertigem sem limites, o gozo da auto­nomia radical, bebido até à última gota.

Outra é a figura do homem e da mulher pós-modernos, Narciso, aquele que «vive do seu próprio encantamento: não suporta o incómodo dos afetos e o trabalho do reconhecimento, as expectativas do outro distraem-no do cuidado de si mesmo». Na realidade, vive mal, fechado no cuidado de si, no reflexo da sua imagem, ora exuberante, ora deprimida, tornando-se «perfeitamente insensível e afetivamente indiferente». Narciso vive fazen­do-se adorar, mas não repara em ninguém nem ama ninguém. «O mito, justamente, assinala a diferença. Prometeu deve sofrer a sua transgressão, mas permanece vivo. Narciso, pelo contrário, afoga-se no seu tédio, como um farrapo na água». O mundo encantado de Narciso, alimentado pelas inúmeras possibilidades da técnica e pelos muitos recursos da sociedade de consumo, vive obcecado pela imagem e pela realização de si. Mas, antes ou depois, esta acaba em frustração. Narciso não reconhece o amor. Narciso não ama. Na contemplação solitária de si, afoga-se em sim mesmo. Fechando-se, morre. Sozinho. Estéril.

Movidos por tal narcisismo auto-referencial, sem sonho nem rasgo, sem apreço nem disponibili­dade a pagar o preço por aquilo que se aprecia, sem criação nem geração, poderia acontecer que imaginássemos Deus, também Ele, como autorreferencialidade absoluta e apática, de facto, um Narciso Absoluto, sem afetos que o co-movam nem laços que o liguem. Mas estaríamos muito longe do traço bíblico do amor que se realiza como apreço e como dom que cria e recria, que gera e regenera. Nesse ídolo, a perfeição e a santidade viveriam protegidas de qualquer relação de afeto, de todo o laço livremente correspondido. Mas que perfeição e que santidade seriam?

 Por José Frazão Correia