Com esta chave, a Oração Eucarística IV desenha o movimento da revelação, expondo a dinâmica dos mistérios cristãos. Ainda que longa, valerá a pena recordá-la na íntegra.
«Nós Vos glorificamos, Pai santo, porque sois grande e tudo criastes com sabedoria e amor. Formastes o homem à vossa imagem e lhe confiastes o universo, para que servindo-Vos unicamente a Vós, seu Criador, exercesse domínio sobre todas as criaturas. E quando, por desobediência, perdeu a vossa amizade, não o abandonastes ao poder da morte, mas, na vossa misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que Vos procuram Vos encontrem. Repetidas vezes fizestes aliança com os homens e pelos profetas os formastes na esperança da salvação. De tal modo amastes o mundo, Pai santo, que chegada a plenitude dos tempos, nos enviastes como Salvador o vosso Filho Unigénito: feito homem pelo poder do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria, viveu a nossa condição humana, em tudo igual a nós, exceto no pecado; anunciou a salvação aos pobres, a libertação aos oprimidos, a alegria aos que sofrem. Para cumprir o vosso plano salvador, voluntariamente Se entregou à morte, e com a sua ressurreição destruiu a morte e restaurou a vida. E a fim de vivermos, não já para nós próprios mas para Ele, que por nós morreu e ressuscitou, de Vós, Pai misericordioso, enviou aos que n’Ele creem o Espírito Santo, como primícias dos seus dons, para continuar a sua obra no mundo e consumar toda a santificação».
É o-amor-que-Deus-Trindade-é que tudo traz à vida, que tudo restitui à vida e que tudo mantém em vida, até que, por Jesus e no Espírito, chegue a ser tudo em todos. Assim a criação. «YHWH-Deus modelou o homem do pó do solo, e soprou nas suas narinas um alento de vida, e o homem tornou-se um ser vivo» (Gn 2,7). «Descrição de sonho», regista A. Couto. «Eis o homem. Ser homem assim é nascer, viver e morrer “à boca de Deus” (Nm 33,38; Dt 34,5), sempre como um beijo de Deus, incrível intimidade com Deus». Eis a «força constitutiva do primeiro dom de Deus» sem a qual «não nos resta senão a natureza com os seus determinismos, a violência, o fatalismo, a idolatria, que é a recondução da existência humana para dentro do princípio natural, enfim, a vitalidade da morte»14. O dom que exprime a verdade do amor é a gramática da criação. Exprime a alegria de Deus por gerar o diferente de si e de estar entre os homens. A criação não é, por isso, emanação, exuberância de um ser narcisista que age para se olhar ao espelho. Não é produção funcional de umas tantas coisas que devem servir para alguma coisa. O poder criador de Deus não é o cálculo ou o interesse, mas o apreço que leva ao dom de si, dom que vive, também ele, de apreço, na forma da confiança reconhecida e correspondida, da generosidade de um afeto grato, capaz de gerar um laço de mútuo reconhecimento. Porque a resposta que o dom implica não tem a forma da posse, mas a do reconhecimento; potência tão humilde, a de Deus criador15! Potência do não possuir para si, mas do dar e do dar-se a si mesmo com o dom que se dá ao reconhecimento de um outro. «Deus deu-me por amor, para que eu receba por amor. Deu-me o mundo por amor, para que eu o receba por amor»16.
Nesta lei está, precisamente, a possibilidade do pecado. Como afirma P. Beauchamp, «existe uma lei do amor que leva Deus a deixar ao homem a possibilidade de pecar»17. O dom da criação tem o seu cume na liberdade do ser humano que pode perverter o dom. A inveja e o medo podem ocupar o lugar vital da confiança. «Eu quero ser Deus porque Deus é definido como aquele que não quer que eu seja como ele»18 (cf. Gn 3,1-7). A voz da suspeita faz o seu caminho, fazendo ressoar a falsidade. «O homem, desde o início do esplendor do primeiro dia da criação, suspeitou, sem motivo, mas convenceu-se de que o motivo existia e, desde então, começou a vê-lo»19. Deus que cria por amor e que, por amor, concede ao ser humano a dádiva da liberdade, capaz de o reconhecer e de lhe corresponder, amando, passa a ser pre-sentido e entre-visto como poder que, se se perder, levará Deus a deixar de ser Deus. «Assim, o pecado apresenta-se como vontade de matar Deus, acusando-o de ser o inimigo da nossa vida»20. O amor reconhecido deixa de bastar para alimentar a confiança. Quer-se a prova que não pode ser conhecida, mas, apenas, acreditada: «que se é amado»21. Porque o amor vive de fé, o afeto de apreço e os laços de confiança. Só pode ser reconhecido e correspondido. Eis a sua força. Eis a sua humildade.
Admiravelmente, diante da suspeita e da inveja, Deus cose vestidos verdadeiros (Gn 3,21), para cobrir a nudez de Adão e Eva que se veem indefesos na sua fragilidade, envergonhados pelos seus limites, inseguros na sua relação. No quadro que este gesto desenha, contemplamos Deus como justiça que não cessa de justificar o ser humano. Neste amor dedicado e delicado está a verdade de Deus, o apreço que motiva a disposição a pagar o preço. Fora deste amor, Deus não está. Fora deste amor, o homem e a mulher não estão à altura de si mesmos, como não estão à altura da criação. Esta será a história da salvação. Recorrendo, ainda, às palavras de A. Couto, «Deus não abandona esta humanidade invejosa e pecadora, não espera por ela à porta da eternidade, mas vem ao seu encontro como ela é, respeitando-a e assumindo a imagem falsa que esta humanidade invejosa e mentirosa fez de Deus». É longa a viagem da condescendência de Deus, desde Abraão, passando pela lei e os profetas e tantos personagens, com as suas histórias de vida e de fé, até Jesus Cristo, em quem «tudo se vê melhor», porque é o Filho (Gl 4,4-6) «que radicalmente se recebe (Jo 10,18; Ap 2,28) e radicalmente se entrega (Jo 10,17; Gl 1,4; 2,20; Ef 5,2.25; Tt 2,14), constituindo assim o acontecimento decisivo da humanidade, “plenitude” (pleroma) do tempo e do mundo, maturação da “salvação” (sôteria)»22.
Descendo ao abismo da entrega do Filho amado, o amor do Pai pela humanidade inteira e pelo seu mundo alcança o seu cume. O mais alto no mais baixo. O mais íntimo no mais exposto. O mais digno no mais humilde. A todo aquele que reconhecer tal dom e, livremente, se lhe abandone, este amor-que-salva comunica a plenitude da vida (cf. Jo 3,16). Como precisa C. Doglio, «o ser de Deus manifesta-se como agápe, fez-se conhecer como “pró-afeição originária” e, no laço da história de Jesus com a história do mundo, revelou a beleza originária deste laço afetivo como saída de si, abertura ao outro e destinação à familiaridade consigo mesmo»23. A perfeição de Deus coincide com o Seu afeto, um laço que liga pelo reconhecimento24. Afirma S. Paulo que Deus nos demonstrou o seu amor pelo facto de, quando ainda eramos pecadores, Cristo ter morrido por nós (cf. Rm 5,8). E S. João confirma que Deus manifestou o seu amor quando mandou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que tivéssemos a vida por meio dele (cf. 1Jo 4,9). É este apreço de Deus pelo ser humano e pelo seu mundo que dispõe Deus a pagar este preço. E recordemos com G. C. Pagazzi que «o mundo da carne do Filho não é só a humanidade, mas todas as coisas que viu, sentiu, gostou, tocou, cheirou», o mundo real com o qual esteve em con-tacto sensível, porque o «Redentor não é o Filho de Deus, mas o Filho de Deus encarnado»25. Neste sentido, «a nova lei do amor é tão antiga como a criação, quando Deus viu que todas as coisas eram boas, surpreendendo-se com a sua admirável honorabilidade, maravilhando-se com o seu valor». Esse é o apreço que, desde o início, dispõe Deus a oferecer-se no próprio Filho, só para não perder o homem e a mulher e o seu mundo que ninguém como o Filho encarnado amou tanto. «No originário a-preço de todas as coisas já vibrava o preço do Filho, do Mediador que em todas as coisas do Seu mundo via um tesouro, uma pérola digna de levar a vender todos os Seus bens (Mt 13,44-46), a Sua própria vida»26. Desta vida vivemos.
A experiência de ser amado e de amar restitui o homem e a mulher, seres sensivelmente espirituais e espiritualmente corpóreos, à graça da criação, à fecundidade das relações, ao gosto da vida a fazer-se em cada encontro, nas palavras e nos gestos de cada dia. Pelo amor e no amor aprendemos a ver mais e melhor, como quem entre-vê o sentido por entre linhas curvas; a tocar justamente cada coisa, acontecimento e pessoa, como quem é tocado por um dom surpreendente e sempre mais do que necessário; a escutar como quem pre-sente a promessa de cada palavra no timbre e na modelação justa dos sons que a anunciam e, claro, em cada silêncio; a apreciar melhor e em cada parcela da realidade o gosto e o perfume da bênção que as coisas, os acontecimentos e as pessoas são. Como a amada e o amado do Cântico dos Cânticos que re-entram no Jardim do Éden, não pela nostalgia das origens perdidas, mas pela vitória do amor sobre o egoísmo, da graça sobre o pecado, da confiança sobre o medo, do desejo ordenado em Deus sobre o desejo desordenado pelo próprio amor, querer e interesse. O amor recebido e retribuído permite reencontrar a dimensão corpórea e relacional da nossa humanidade, com os seus ritmos quotidianos e os seus lugares comuns, onde se dá, de facto, a experiência de Deus. E permite reencontrar o mundo como casa onde sentimos ser de casa e nos sentimos em casa27, o espaço acolhedor e hospitaleiro, onde a posse cede, de novo, o lugar ao dom e o furto ao fruto28. Assim pode amar-se Deus em todas as coisas e amar todas as coisas em Deus. A história pode recomeçar, agora, com coisas novas e ainda mais belas do que aquelas criadas no início29. Porque o amor é sempre novo e faz novas todas as coisas e não fica indiferente a quem dele se separa. «É um olhar “original” porque vê profundidade e significados que quem não ama não é capaz de entrever. Mas é “original”, também, porque reenvia para a experiência das “origens”, participando do olhar de Deus sobre a bondade e a beleza da criação», o tal apreço que diz a modelação originária do amor. «Se existe um pecado original […], também existe um olhar original sobre a realidade que deve ser absolutamente recuperado». E um escutar e um tocar e um saborear e um cheirar originais. E um estilo de encontros e de relações e de modos de habitar o mundo original. Assim, «só o amor, como fruto da ação do Espírito, está à altura de iluminar os sentidos e a mente, de conduzir a um discernimento autêntico e a uma ação consequente»30, inspirando e conformando, assim, o estilo “vivível” e visível de uma existência assinalada pela graça que salva.
Quem vive no amor, tão bem situado e tão grato, tão humilde e tão generoso, tão atento e tão ativo (não confunde a relação com Deus com alienação, nem o espiritual com o desencarnado), poderá dizer, em palavras e gestos, no corpo e na alma, «Ó Jesus, é por vosso amor». Professa a fé, declarando o amor, como Pedro: «Senhor, tu sabes tudo, bem sabes que te amo» (Jo 21,17), sabendo que, agora, permanecem a fé, a esperança e o amor, mas que maior que todas as coisas é o amor (cf. 1Cor 13,13). Não tendo outra casa onde sentir-se em casa, além desta pobreza alegre de viver, dia a dia, sob o olhar misericordioso do amor de Deus, ao qual co-responde em confiança, nem outra almofada onde descansar a cabeça do cansaço da vida, que não lhe será poupado, poderá rezar com as palavras de S. Inácio de Loiola, sugeridas como vértice do longo percurso dos seus Exercícios Espirituais.
«Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade, a minha memória, o meu entendimento e toda a minha vontade, tudo o que tenho e possuo; Vós mo destes; a Vós, Senhor, o restituo. Tudo é vosso, disponde de tudo, segundo a vossa inteira vontade. Dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta» (n. 234).
A oração nasce do amor e tende para o amor. Quem tudo recebe e se recebe com gratidão (ser assim, é chegar a ser filho) poderá oferecer o que tem e oferecer-se a si mesmo com grandeza de ânimo. Em Deus-amor-que-nos-faz-ser-no-amor, a história de vida de cada um e de cada comunidade poderá desenhar-se como ato de apreço, de acolhimento e de entrega confiada – de intercessão, de mediação – aos homens e mulheres que existem (não àqueles que se idealizam ou que se gostaria que existissem), neste tempo concreto da nossa história coletiva. Assim se dirá o amor e se realizará a salvação, fazendo-se eucaristicamente corpo (um estilo de vida eucarístico), nas relações e na família, na política e na cultura, na economia e nas ciências, nos ofícios e nas artes, como o Verbo que se faz carne para alimentar a vida de cada um, sobretudo dos que vivem sem alimento e que, só por si, não o conseguem alcançar. Cume e fonte da vida con-formada à vida de Jesus Cristo (é assim que se torna humana), re-cria cada pessoa, coisa e lugar, bendizente e fecundo. O amor salva-guarda a vida. Para que floresça, amável, como amável é a sua Origem e o seu Destino. Ó Jesus, é por vosso amor e por amor de todos os que amais.
Por José Frazão Correia