Assumir o lugar do pecador, perante Deus

Nem sempre é possível assumir ou descobrir esta consciência. Nesse momento é necessário assumir o lugar do pecador, perante Deus, pois quem perdoa e vive a fé em Deus sabe que quem não o faz está numa situação muito pior. Estabelece-se aqui um processo de substituição.

Nesse momento tentamos remediar o que o outro fez ou desfez, tentamos reparar os danos do pecado individual e social. Esta é a experiência de Jesus e dos servos de Javé no deutero-Isaías (cf. Lc 22,37; 1Ped 2,22-24). O servo de Javé coloca-se no lugar do povo pecador de Israel para realizar um resgate substitutivo transformando-se num “go’el”, naquele que resgata, isto é, naquele que repara na situação de pecado em que o povo vive e que por isso quer reparar a vida do seu povo, quer restaurar o seu próprio povo.

Este servo apresenta um interesse mais religioso por ouvir o convite de Deus (cf. Is 42,3.7; 50,4; 53,4-5), tenta eliminar o pecado carregando os pecados dos outros (53,4-5), interessa-se por que a salvação chegue a todos (49,6; 53,12). O servo de Is 49,3-4 espelha a fragilidade e os receios, pois ao servo a sua missão parece um fracasso. No entanto, é um sucesso para Deus.

Este servo já passa por uma agonia semelhante à de Jesus no Getsémani em Mc 14,33-36, faz aí a experiência da última porta que dá sentido – a fé, a confiança no Deus confiável, fiável, fiel, digno de fé, pois humanamente é uma missão impossível, sem sentido, sem nexo ou razão. Este servo não deixa de ser humano, que sofre diante do sofrimento, que não consegue explicar totalmente como Job e como Jesus (cf. Sl 22). Por isso, vêm os vv.5-6 como sinal de encorajamento, alargando o campo evangelizador. A missão do servo passa os limites geográficos da Palestina e de Israel e estende-se a todos os povos. Esta missão sem fim apresenta uma finalidade espiritual: levar à conversão sendo luz e salvação.

O servo está assim chamado a ser sacramento de Deus, sinal da misericórdia de Deus no meio de todo o mundo e da história dos Homens. O quarto canto de Is 52,13-53,12 desfaz a ambiguidade do terceiro canto, pois aqui o sofrimento é exaltação do servo, é riqueza para a multidão e justificação da multidão, o servo coloca-se substituindose no lugar dos pecadores. Isto é uma doutrina totalmente nova, incrível para Israel.

O servo repara-os. Perante este facto há que evitar dois extremos: dizer que isto é totalmente impossível (pois ao nível humano é de facto constatável um acrescento pelo sofrimento em nome dos outros, pelo sacrifício pelos outros), ou dizer que tudo é explicável, total e facilmente racionalizável. Note-se que o sofrimento do inocente permanecerá sempre enigmático como crítica à doutrina tradicional do princípio da retribuição proporcional (cf. Job, Qo).

A novidade deste canto é o triunfo do humilhado. Por outro lado, quem narra está de fora, do lado dos que assistem ao espetáculo, do lado dos que ultrajam. São eles que contam que a existência do sofredor é uma existência atormentada, dolorosa, mas também o é a existência dos próprios que atormentam, dos que fazem sofrer, pois reconhecem-no («os nossos delitos»: Is 53,5) e lamentam-se: «pelas suas chagas todos nós fomos curados» (Is 53,5). Este é o sentido e o alcance da primeira pessoa do plural.

Diante de tudo isto, não admira que esta figura tivesse sido relida logo à luz da Páscoa no credo da comunidade cristã primitiva (cf. 1Cor 11,23; 15,3-5). Por tudo isto podemos concluir que o servo refaz, restaura, repara, restitui os pecadores à aliança pela consciência do seu pecado. Como vítima inocente, o servo está onde os outros não sabem que estão nem o que fazem, e por isso o servo repara, sacrifica-se por eles, põe-se entre eles e Deus. Este quarto servo apresenta-se como um figura sacerdotal, sapiencial e profética, que pertence aos “anawîm”.

É um profeta que sofre na condição de mediador que dá a vida em favor da multidão e dos pecadores. Este servo continua a experiência dos enviados de Javé pois as provas afligem o enviado de Deus na execução da sua missão, à semelhança de Paulo que também experimenta uma agonia interna e externa (cf. 1Tes 2,4-9).

Todavia, emerge neste servo uma figura de ordem espiritual capaz de reconciliar o Homem com Deus, capaz de reparar uma relação de aliança destruída. Os que romperam a aliança não são capazes disso, precisam de alguém que interceda ou medeie.

Por Jose Carlos Carvalho