D. Estevão Bettencourt, osb
Em síntese: A Igreja como tal é infalível quando ensina em matéria de fé e de Moral; é neste contexto que se coloca a infalibilidade papal. Ela participa da infalibilidade da Igreja. O próprio Evangelho fundamenta essa prerrogativa petrina em Mt 16, 16-19; Lc 22, 31s; Jo 21, 15-17. Em Mt 28, 18-20 Jesus promete sua assistência infalível a toda a Igreja. A infalibilidade papal foi-se manifestando em sucessivos episódios da história da Igreja. Todavia no fim da Idade Média foi contestada por uma corrente dita “Conciliarista”, que proclamava a superioridade de um Concílio Geral sobre a autoridade do Papa; o conciliarismo medieval foi restaurado nos séculos XVII e XVIII pela tendência a criar igrejas nacionais na França e na Áustria, mas não prevaleceu. A infalibilidade papal em matéria de fé e de Moral foi objeto de definição do Concílio do Vaticano I (1870) frente a tendências racionalistas e relativistas da época. Foi reafirmada pelo Concílio do Vaticano II (1962-1965).
A infalibilidade em matéria de fé e de Moral é prerrogativa do magistério da Igreja. Esta não pode ensinar proposições errôneas que deturpem o Evangelho apregoado por Jesus Cristo; deve-se conservar pura e íntegra a doutrina que Este entregou à sua Igreja e que tem por preço o sangue do Filho de Deus feito homem.
É dentro da infalibilidade da Igreja que se coloca a infalibilidade do Papa outorgada por Jesus a Pedro e seus sucessores, como se verá adiante.
O magistério da Igreja pode ser
– ordinário, o qual ocorre quando todos os Bispos em comunhão com o Papa ensinam alguma doutrina tida como artigo de fé ou de Moral;
– extraordinário: no caso de uma proclamação da verdade em caráter definitório por um Concílio Geral ou pelo Sumo Pontífice falando ex cathedra.
Não se julgue que todas as verdades de fé devam ser definidas por um Concílio ou por uma declaração papal. Basta o magistério ordinário para fundamentar a fé em tal ou tal proposição doutrinária.
Nas páginas seguintes será focalizada a infalibilidade papal no seu fundamento bíblico e na história da Igreja.
1. Fundamento bíblico
Como dito, a infalibilidade pontifícia é uma expressão da infalibilidade da Igreja. É o que se depreende de uma declaração do Concílio do Vaticano I:
“O dom da infalibilidade nos foi revelado como prerrogativa perpétua da Igreja de Cristo… Este dom foi conferido a fim de que a Palavra de Deus, em sua forma escrita como também em sua transmissão oral, seja protegida e conservada em toda a Igreja de maneira intacta e isenta de qualquer traço de inovação ou de mudança” (esquema de 21/01/1870).
A infalibilidade da Igreja em questões de fé e de Moral é atestada pelos escritos do Novo Testamento.
Com efeito, Cristo é a verdade (Jô 14,6) e enviou o Espírito da Verdade aos seus discípulos (Jô 14,17); o Espírito lhes devia ensinar toda a Verdade (Jô 14,13), para que a levassem até os confins do mundo (At 1,18). Os discípulos apregoavam a Boa-Nova sob o impulso do Espírito (At 4,8). É digna de nota a fórmula como é proclamada a liberdade dos pagãos convertidos frente à lei de Moisés: “O Espírito Santo e nós julgamos conveniente…) (At 15,28).
Pedro e seus sucessores compartilham essa infalibilidade, como consta de Mt 16, 16-19; Lc 22, 31s; Jô 21, 15-17. Pedro deve confirmar seus irmãos na fé, gozando da assistência infalível de Cristo prometida a toda a Igreja: “Estarei convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).
2. No decorrer da história
O magistério dos Papas (Bispos de Roma) foi mais e mais reconhecido, especialmente por ocasião de debates teológicos nos quais o Papa era chamado a intervir ou tomava a iniciativa de intervir, usando da sua autoridade em favor da ortodoxia. A Igreja de Roma era tida como baluarte da reta fé, que ninguém podia ignorar; é o que atesta Santo Ireneu (+ 202):
“Com essa Igreja romana é necessária que todas as igrejas se ponham de acordo por causa da sua eminente autoridade e porque, por ela, a tradição que vem dos Apóstolos, sempre foi conservada” (Contra as Heresias III, 24).
S. Ireneu professa ainda que “a verdade só pode ser encontrada na Igreja, que é sempre a mesma e que goza do carisma da verdade apoiada no testemunho dos Profetas, dos Apóstolos e de todos os discípulos, pois onde está a Igreja, aí estão Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja, fonte de toda graça; em suma aí está o Espírito da Igreja, a própria verdade” (Contra as Heresias III 24).
Decênios mais tarde escrevia São Cipriano de Cartago (+ 258):
“A Igreja, que crê no Cristo, permanece atenta àquilo que Ela outrora aprendeu e jamais se separa dessa doutrina” (epístola 59,7).
A seguir, registra-se no decorrer da história a intervenção do Bispo de Roma como árbitro em debates teológicos. Assim:
Em 260 aproximadamente o Papa São Dionísio se pronuncia condenando a heresia trinitária dos sabelianos (o Rilho seria uma modalidade do Pai);
Em 269 aproximadamente o Papa São Félix condenou os erros de Paulo de Samósata sobre a Encarnação do Verbo em carta dirigida a Máximo, Bispo de Alexandria;
Solicitado pelos concílios de Cartago (416) e Milevo (417), Inocêncio I rejeita o pelagianismo, que negava a necessidade da graça de Deus para a salvação do homem;
Em 430 o Bispo de Roma Celéstio I condenou os erros de Nestorio, solicitado por São Cirilo de Alexandria, erros referentes a Cristo (que teria dois eu, o divino e o humano).
Por ocasião da contenda monofisita o Patriarca de Constantinopla, Flaviano escreveu ao Bispo de Roma São Leão Magno, expondo-lhe os erros debatidos. Ao que respondeu Leão Magno mediante o Tomus Flaviani (como de Flaviano) datado de 449, obra em que expunha em termos precisos o mistério da Encarnação. Este documento, lido aos sinodais no Concílio de Calcedônia (451), provocou a exclamação de todos: “Essa é a fé católica!”
Muitos significativos são também os dois seguintes episódios:
Em meados do século VI o Imperador Justiniano (que se fazia de teólogo) queria condenar como hereges os nomes de Teodoro de Mopsuéstia (+ 428), Teodoreto de Ciro (+ 458) e Ibas de Edessa (+ 45). O Papa Vigílio se opunha a essa decisão; pelo que o Imperador mandou buscá-lo em Roma para que em Constantinopla assinasse a fórmula de condenação, tal era a importância da aquiescência do Bispo de Roma para que fosse válida alguma declaração teológica.
Em 649 o Papa Martinho I (649-655) recusou aceitar o símbolo de fé patrocinado pelo Imperador Constante II (641-668). Em represália o monarca mandou prender o Papa em Roma e deportá-lo para Constantinopla a fim de que subscrevesse o Credo imperial. Já que Martinho I recusou peremptoriamente fazê-lo, foi exilado na Criméia, onde heroicamente faleceu.
A propósito da controvérsia iconoclasta, que agitava o Oriente, o Bispo Hormisdas, de Roma, interveio com uma carta que explanava o autêntico sentido das imagens na Igreja.
No decorrer da Idade Média foram diversos os pronunciamentos papais visando a dirimir teológicas. Sema citadas a Constituição Benedictus Deus (1336), do Papa Bento XII a respeito da visão beatífica concedida aos justos antes mesmo do fim dos tempos e não, como erroneamente afirmavam alguns, somente após o juízo final. Citamos também a Constituição Licet iuxta doctrinam, de João XXII, condenando os erros de Marsílio de Pádua sobre a estrutura da Igreja. No fim da Idade Média, deu-se o Grande Cisma do Ocidente, por ocasião do qual, além do Papa legítimo em Roma, houve dois antipapas. Para resolver o impasse assim criado, muitos teólogos apelaram para o conciliarismo, que colocava a autoridade de um concílio geral acima da autoridade papal, contrariando um axioma muito repetido outrora: “Prima sedes a nemine iudicatur, – A primeira se por ninguém é julgada”. Assim Pierre d’Ailly (+ 1420) escrevia: “O Concílio geral pode em vários casos julgar e condenar o Papa; em vários casos é lícito apelar do Papa para um Concílio, ou seja, nos casos em que a Igreja é ameaçada de destruição” (Tractatus de ecclesiae, Cincillii generalis, Romani Pontificis et Cardinalium auctoritate).
O conciliarismo encontrou seus contraditores, entre os quais João de Turrecremata (+ 1468), que escreveu um Tratado da Igreja onde se lê: “A sentença da Sé Apostólica não pode errar nas coisas pertinentes à fé e necessárias à salvação” (Summa de Ecclesia 1, II, cap. CIX).
O conciliarismo foi declinando na segunda metade do século XV, mas voltou à baila nos séculos XVII e XVIII, inspirado pela teoria das Igrejas Nacionais (Galicanismo, Febronianismo…). Com efeito, o rei Luís XIV, da França, aspirava a ter uma Igreja Nacional regida pelo seguinte artigo da assembléia do clero de 1682:
“Embora ao Sumo Pontífice toque a parte principal em questões de Fé e seus decretos digam respeito a todas as Igrejas e a cada uma delas, suas sentenças não são irreformáveis a menos que estejam apoiadas pelo consentimento da Igreja inteira” (artigo 4).
Também a onda nacionalista, que passou pela Áustria e outras regiões, foi-se retirando de cena; deixava, porém, na igreja Católica a consciência da necessidade de esclarecer a questão do primado do Papa. Isto foi feito em 1870 no Concílio do Vaticano I.
3. O Concílio do Vaticano I
O século XIX foi agitado para a Igreja. Além de correntes anticristãs de épocas passadas, nele encontrou voga a mentalidade liberal ou relativista, que solapava a primazia do magistério de Pedro. Em vista disto, o Papa Pio IX, aos 6/12/1864 confiou a alguns Cardeais a sua intenção de reunir um Concílio para tratar do assunto. A França, impregnada de resquícios da mentalidade galicana, opunha-se à definição da infalibilidade do Papa. Os países de língua alemã eram-lhe ainda mais avessos; temiam que o Papado se tornasse uma monarquia autoritária, todavia, uma vez reunido o Concílio, a maioria dos conciliares se mostrou favorável à definição, tendo em vista afastar todo resquício de galicanismo assim como a mentalidade subjetivista e relativista da época. A oposição não pretendia negar o fato mesmo da infalibilidade, mas temia que se cavasse um fosse ainda mais profundo entre o Papado e a sociedade civil. Prevaleceu, porém, o parecer favorável da maioria, de modo que, antes da definição do dogma, se retiram de Roma os sinodais oponentes, em grande maioria orientais temerosos de que a Igreja viesse a sofrer uma latinização indevida. Aos 16/7/1870 realizou-se a votação da infalibilidade pontifícia, havendo 553 vozes favoráveis e 2 contrárias. Eis o teor da definição:
“Nós, segundo a Tradição fielmente recebida desde os primórdios da fé, para a glória de Deus nosso Salvador, para a exaltação dos povos católicos e salvação dos povos cristãos, com a aprovação do sagrado concílio, ensinamos e definimos que é dogma revelado por Deus: Que o Romano Pontífice, quando fala ex-cathedra, isto é, quando, cumprindo sua função de Pastor e Doutor de todos os cristãos, define, em razão de sua suprema autoridade apostólica, que uma doutrina de Fé ou de Moral deve ser guardada por toda a Igreja, goza, em virtude da assistência divina que lhe foi prometida na pessoa do Bem-aventurado Pedro, daquela infalibilidade com que o Divino Redentor quis que fosse dotada a sua Igreja ao definir uma doutrina de Fé ou de Moral, e que portanto, tais definições do Romano Pontífice são irreformáveis por si mesmas e não em virtude do consenso da Igreja” (Fé Católica n. 7189).
Esmiuçando esta definição, verificamos que ela consta de quatro elementos indispensáveis para que haja uma sentença infalível:
1) É preciso que o Papa empenhe sua suprema autoridade, como Pastor de toda a Igreja;
2) É necessário que o assunto em pauta seja uma questão de fé ou de Moral;
3) Requer-se que os destinatários sejam os fiéis da Igreja inteira;
4) É preciso ainda que a redação da sentença manifeste a intenção de definir. Esta intenção deve ser explicitada.
O que acaba de ser exposto, não significa que os pronunciamentos do Papa em seu magistério ordinário (não solene, ex-cathedra) possam ser livremente debatidos como os de qualquer teólogo. O Papa não fala sem ter estudado ou sem ter mandado estudar a temática; além do quê é de crer que goze de peculiar assistência do Espírito Santo para que nunca indique algo de dúbio ou menos santo aos fiéis.
4. Fora do Catolicismo
O protestantismo afirma a infalibilidade da Palavra de Deus.
Esta sentença; aliás muito sábia, é prejudicada pelo fato de que cada crente tem direito ao livre exame dessa Palavra ou da Bíblia; donde resultam diversas interpretações do texto sagrado; tenha-se em vista a questão do dia do Senhor (será domingo ou sábado?), a do Batismo de crianças (sim ou não?), a da estrutura da Igreja (tem bispos ou não tem bispos? Podem as mulheres receber as Ordens sacras?). O subjetivismo pode aí prevalecer, deturpando o sentido da Palavra de Deus, como acontece nas mais recentes denominações derivadas do protestantismo (Mórmons, Testemunhas de Jeová, Ciência Cristã…). Assim se esfacela o Cristianismo.
2. O anglicanismo, em suas origens, professava a infalibilidade da Igreja. Todavia foi penetrado por reformadores do continente europeu, que fizeram da infalibilidade da Igreja o objeto de uma opinião teológica, e não um dogma de fé. A ordenação de mulheres para o episcopado divide a Comunhão Anglicana sem que haja alguma instância capaz de conciliar os diversos pontos de vista.
3. Os orientais ortodoxos constam de Igreja autocéfalas, ligadas ao Patriarcado de Constantinopla por deferência honrosa, sem conotação jurídica. Admitem a infalibilidade da Igreja como Corpo ou sociedade, não a reconhecem aos Bispos nem ao clero nem a algum membro em particular, mas somente ao conjunto como “Igreja”.
4. Os Velhos Católicos são a ala que se separou da Sé Apostólica em 1871 por não reconhecer a definição da infalibilidade do Papa. No início da sua história admitiam a infalibilidade da Igreja como o Catolicismo, do qual se separaram. Por influência do protestantismo, passaram a negar essa prerrogativa da Igreja nos termos abaixo, devidos ao teólogo Michaud:
“É claro que, se a Igreja fosse divina, ela seria sem mancha. Eis, porém, que ela tem manchas; cego é aquele que não as vê. Por conseguinte a Igreja não é divina. Pode-se dizer que ela é infalível na medida em que ela ensina o que Cristo ensinou… O Cristo como Verbo encarnado era infalível. Por conseguinte só se pode dizer que a Igreja é infalível quando ela se restringe a esse elemento divino e infalível. O resto ela não tem a missão nem de o ensinar nem de o transmitir nem de o definir” (Revue Internationale de Theologie 1907, pp. 289-291).
A propósito convém observar que a Santa Mãe Igreja tem filhos pecadores, mas Ela mesma é a Esposa de Cristo sem mancha nem ruga (Ef 5, 25-27). Com outras palavras: distingamos a Pessoa da Igreja (Cristo, que nela vive e lhe garante a indefectibilidade) e o pessoal da Igreja (os fiéis que oscilam em sua conduta de vida, não se conformando aos ensinamentos da Santa Mãe Igreja).
Fonte: Revista: PERGUNTE E RESPONDEREMOS / Nº 534 – Ano : 2006 – Pág. 544