por Percival Puggina
Não precisa ser ministro do Supremo para saber que toda proposição legislativa com apoio popular, maioria parlamentar e concordância do governo vai a votação e é aprovada. Viés oposto, se uma proposição, mesmo com apoio do governo, leva anos tramitando e não chega ao plenário (como as que tratam de união homossexual) é porque não tem apoio popular nem parlamentar. Nesses casos, o próprio autor evita a votação porque percebe que vai perder. Melhor do que ninguém ele sabe que a Casa já decidiu. E decidiu contra.
Portanto, quebra o nariz contra o óbvio quem repreende o Congresso por não haver votado matéria reconhecendo as uniões homossexuais estáveis como constituintes de entidade familiar. Sabe por que, leitor? Porque nesse caso, além do óbvio dito acima, o Congresso já deliberou três vezes! E em todas reconheceu como entidade familiar somente: 1) a união estável “entre o homem e a mulher” (Constituição de 1988); 2) a união estável “de um homem e uma mulher” (Lei Nº 9.278 de 1996); e 3) a união estável “entre o homem e a mulher” (Novo Código Civil de 2002). E ainda há ainda quem ouse afirmar, com face lenhosa, que o Congresso se omitiu.
Por outro lado, os ministro do STF sabiam! Sabiam que essa mesma questão surgiu durante o longo processo constituinte dos anos 1987 e 1988. Sabiam que a versão inicial do art. 226 só falava em união estável. Sabiam que a redação assim posta deixava margem à dúvida. Sabiam que essa dúvida gerou debate nacional e foi pauta, inclusive, do programa Fantástico. E sabiam que o texto do § 3º do art. 226 foi redigido por emenda do deputado Roberto Augusto, exatamente para dirimir a ambiguidade e esclarecer que a norma se referia à união “entre o homem e a mulher”. Aliás, ao justificar a emenda do colega constituinte no dia em que foi a votação, o deputado Gastone Righi disse que a proposta visava a “evitar qualquer malévola interpretação” do texto constitucional, eis que, em sua ausência, “poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo”. O plenário do Supremo sabia tudo isso porque o ministro Ricardo Lewandowski, ao votar, se encarregou de o rememorar. Mas a “malévola interpretação” que os constituintes quiseram evitar acabou urdida no dia 5 de maio, a vinte mãos, pelo STF. Apesar de tudo.
Aquilo foi o AI-5 do STF! Ele não apenas legislou, mas legislou contra a vontade explícita do Congresso Nacional. Fez hermenêutica pelo avesso da norma. Doravante, até que se restabeleça o Estado Democrático de Direito, só é constitucional aquilo que a Corte desejar que goteje dos princípios da Carta de 1988. O Poder Legislativo foi sorvido pelo Supremo, onde onze pessoas extraem tudo que querem de meia dúzia de artigos da Constituição. O resto é letra morta, palavra ao vento, sem valor normativo. Deixaram os ministros de ser guardiões para se converterem em donos da Lei Maior. Assim como Geisel concebeu a “democracia relativa” (relativa à sua vontade), o STF inventou a relativização da Constituição (relativizada ao desejo de seus ministros).
Foi escancarada a porta para o totalitarismo jurídico. Passou o bezerrinho. Atrás vem a boiada. Doravante, se um projeto de lei não tiver guarida no Congresso, recorra-se ao Supremo. Sempre haverá um princípio constitucional para ser espremido no pau-de-arara das vontades presentes.
Fonte: Editora Cléofas