O QUE É A LIBERTAÇÃO CRISTÃ?

Papa Paulo VI 

Para um correto entendimento do que seja a libertação que Cristo veio trazer ao homem, apenas transcrevo aqui o que o Papa Paulo VI escreveu sobre libertação em sua exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi”, em 1974. 

Uma mensagem de libertação 

30. São conhecidos os termos em que falaram de tudo isto, no recente Sínodo, numerosos Bispos de todas as partes da terra, sobretudo os do chamado “Terceiro Mundo”, com uma acentuação pastoral em que se repercutia a voz de milhões de filhos da Igreja que formam esses povos, Povos comprometidos, como bem sabemos, com toda a sua energia no esforço e na luta por superar tudo aquilo que os condena a ficarem à margem da vida: carestias, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais e especialmente nos intercâmbios comerciais, situações de neo-colonialismo econômico e cultural, por vezes tão cruel como o velho colonialismo político. A Igreja, repetiram-no os Bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, sendo muitos destes seus filhos espirituais; o dever de ajudar uma tal libertação nos seus começos, de dar testemunho em favor dela e de envidar esforços para que ela chegue a ser total. Isso não é alheio à evangelização. 

Necessária ligação com a promoção humana 

31. Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento, libertação, existem de fato laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar “que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade”.(61) 

Pois bem: aquelas mesmas vozes que, com zelo, inteligência e coragem, ventilaram este tema candente, no decorrer do referido Sínodo, com grande alegria nossa forneceram os princípios iluminadores para bem se captar o alcance e o sentido profundo da libertação, conforme ela foi anunciada e realizada por Jesus de Nazaré e conforme a Igreja a apregoa. 

Sem confusão nem ambigüidade 

32. Não devemos esconder, entretanto, que numerosos cristãos, generosos e sensíveis perante os problemas dramáticos que se apresentam quanto a este ponto da libertação, ao quererem atuar o empenho da Igreja no esforço de libertação, têm freqüentemente a tentação de reduzir a sua missão às dimensões de um projeto simplesmente temporal; os seus objetivos a uma visão antropocêntrica; a salvação, de que ela é mensageira e sacramento, a um bem-estar material; a sua atividade, a iniciativas de ordem política ou social esquecendo todas as preocupações espirituais e religiosas. No entanto, se fosse assim, a Igreja perderia o seu significado próprio. A sua mensagem de libertação já não teria originalidade alguma e ficaria prestes a ser monopolizada e manipulada por sistemas ideológicos e por partidos políticos. Ela já não teria autoridade para anunciar a libertação, como sendo da parte de Deus. Foi por tudo isso que nós quisemos acentuar bem na mesma alocução, quando da abertura da terceira Assembléia Geral do Sínodo, “a necessidade de ser reafirmada claramente a finalidade especificamente religiosa da evangelização. Esta última perderia a sua razão de ser se se apartasse do eixo religioso que a rege: o reino de Deus, antes de toda e qualquer outra coisa, no seu sentido plenamente teológico”.(62) 

A libertação evangélica 

33. Acerca da libertação que a evangelização anuncia e se esforça por atuar, é necessário dizer antes o seguinte: ela não pode ser limitada à simples e restrita dimensão econômica, política, social e cultural; mas deve ter em vista o homem todo, integralmente, com todas as suas dimensões, incluindo a sua abertura para o absoluto, mesmo o absoluto de Deus; ela anda portanto coligada a uma determinada concepção do homem, a uma antropologia que ela jamais pode sacrificar às exigências de uma estratégia qualquer, ou de uma “práxis” ou, ainda, de uma efiicácia a curto prazo. 

Libertação baseada no reino de Deus 

34. Assim, ao pregar a libertação e ao associar-se àqueles que operam e sofrem com o sentido de a favorecer, a Igreja não admite circunscrever a sua missão apenas ao campo religioso, como se se desinteressasse dos problemas temporais do homem; mas reafirmando sempre o primado da sua vocação espiritual, ela recusa-se a substituir o anúncio do reino pela proclamação das libertações puramente humanas e afirma que a sua contribuição para a libertação ficaria incompleta se ela negligenciasse anunciar a salvação
em Jesus Cristo.
 

Libertação com uma visão evangélica do homem 

35. A Igreja relaciona, mas nunca identifica a libertação humana com a salvação
em Jesus Cristo, porque ela sabe por revelação, por experiência histórica e por reflexão de fé que nem todas as noções de libertação são forçosamente coerentes e compatíveis com uma visão evangélica do homem, das coisas e dos acontecimentos; e sabe que não basta instaurar a libertação, criar o bem-estar e impulsionar o desenvolvimento, para se poder dizer que o reino de Deus chegou.
 

Mais ainda: a Igreja tem a firme convicção de que toda a libertação temporal, toda a libertação política, mesmo que ela porventura se esforçasse por encontrar numa ou noutra página do Antigo ou do Novo Testamento a própria justificação, mesmo que ela reclamasse para os seus postulados ideológicos e para as suas normas de ação a autoridade dos dados e das conclusões teológicas e mesmo que ela pretendesse ser a teologia para os dias de hoje, encerra em si mesma o gérmen da sua própria negação e desvia-se do ideal que se propõe, por isso mesmo que as suas motivações profundas não são as da justiça na caridade, e porque o impulso que a arrasta não tem dimensão verdadeiramente espiritual e a sua última finalidade não é a salvação e a beatitude em Deus. 

Libertação que comporta necessariamente uma conversão 

36. A Igreja tem certamente como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressivas e menos escravizadoras; mas ela continua a estar consciente de que ainda as melhores estruturas, ou os sistemas melhor idealizados depressa se tornam desumanos, se as tendências inumanas do coração do homem não se acharem purificadas, se não houver uma conversão do coração e do modo de encarar as coisas naqueles que vivem em tais estruturas ou que as comandam. 

Libertação que exclui a violência 

37. A Igreja não pode aceitar a violência, sobretudo a força das armas, de que se perde o domínio, uma vez desencadeada, e a morte de pessoas sem discriminação, como caminho para a libertação; ela sabe, efetivamente, que a violência provoca sempre a violência e gera irresistivelmente novas formas de opressão e de escravização, não raro bem mais pesadas do que aquelas que ela pretendia eliminar. Dizíamos quando da nossa viagem à Colômbia: “Exortamo-vos a não pôr a vossa confiança na violência, nem na revolução; tal atitude é contrária ao espírito cristão e pode também retardar, em vez de favorecer, a elevação social pela qual legitimamente aspirais”, (63) E ainda: “Nós devemos reafirmar que a violência não é nem cristã nem evangélica e que as mudanças bruscas ou violentas das estruturas seriam falazes e ineficazes em si mesmas e, por certo, não conformes à dignidade dos povos”.(64) 

Contribuição específica da Igreja 

38. Dito isto, nós regozijamo-nos de que a Igreja tome uma consciência cada dia mais viva do modo próprio, genuinamente evangélico, que ela tem para colaborar na libertação dos homens. E o que faz ela, então? Ela procura suscitar cada vez mais nos ânimos de numerosos cristãos a generosidade para se dedicarem à libertação dos outros. Ela dá a estes cristãos “libertadores” uma inspiração de fé e uma motivação de amor fraterno, uma doutrina social a que o verdadeiro cristão não pode deixar de estar atento, mas que deve tomar como base da própria prudência e da própria experiência, a fim de a traduzir concretamente em categorias de ação, de participação e de compromisso. Tudo isto, sem se confundir com atitudes táticas nem com o serviço de um sistema político, deve caraterizar a coragem do cristão comprometido. A Igreja esforça-se por inserir sempre a luta cristã em favor da libertação do desígnio global da salvação, que ela própria anuncia. 

O que acabamos de recordar aqui emerge por mais de uma vez dos debates do Sínodo. Nós próprios, aliás, também quisemos dedicar a este mesmo tema algumas palavras de esclarecimento na alocução que dirigimos aos Padres sinodais no final da Assembléia.(65) 

Todas estas considerações deveriam contribuir, ao menos é de esperar que assim suceda, para evitar a ambigüidade de que se reveste freqüentemente a palavra “libertação”, nas ideologias, nos sistemas ou nos grupos políticos. A libertação que a evangelização proclama e prepara é aquela mesma que o próprio Jesus Cristo anunciou e proporcionou aos homens pelo seu sacrifício. 

 

 


Professor Felipe Aquino é viuvo, pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova. Página do professor: www.cleofas.com.br Twitter: @pfelipeaquino