O Exmo Sr. Bispo de Piracicaba, Dom Eduardo Koaik, escreveu um oportuno artigo contestando as acusações do advogado Milton Martins, no Jornal de Piracicaba, sobre o Processo de Beatificação do Papa Pio XII. Injustamente o advogado acusa a Igreja católica e o Papa Pio XII. Tendo em vista a importância do artigo o publicamos em seguida.
Prof. Felipe Aquino – www.cleofas.com.br
A propósito da beatificação de Pio XII
Dom Eduardo Koaik
Quando falam mal do Papa Pio XII (Eugenio Pacelli), não me sinto bem de ficar calado. Ao tempo de estudante de Teologia (1946–1950) na Universidade Gregoriana, em Roma, tive a felicidade de acompanhar de perto uma parte do seu longo e profícuo pontificado (1939–1958), logo após a 2ª. Guerra Mundial do século XX. No dia da minha ordenação sacerdotal (1950), celebrei minha primeira missa com o cálice que um dia antes, a meu pedido, o papa havia celebrado com ele. Esse cálice me acompanha até hoje, passados 58 anos.
Em fins de janeiro, li um artigo no Jornal de Piracicaba, assinado pelo advogado Milton Martins. A pretexto de questionar a beatificação do Papa Pio XII, cujo processo está em curso, e em razão de o atual sucessor, o Papa Bento XVI, haver constituído uma comissão de alto nível para avaliar melhor a acusação que se faz a Pio XII de que teria sido condescendente com o nazismo, em particular na delicada questão do holocausto dos judeus, o autor do artigo passa a agredir a Igreja Católica vendo nela só o mal e nenhum bem. Gente com esse olhar da história fecha a possibilidade de qualquer diálogo. Por isso estou a escrever não uma resposta, mas apenas em atenção aos leitores do Jornal de Piracicaba.
Não sei por que, nesse artigo, além de outros ataques, questiona-se até o celibato uma vez que tem havido religiosos envolvidos com pedofilia. Pelas estatísticas, este ato imoral que envergonha a dignidade de quem o pratica e não a de sua vocação, é mais freqüente com pessoas casadas. Nem por isso vai-se desacreditar a instituição do matrimônio. A Igreja Católica reconhece-se santa e pecadora. Em suas celebrações de fé, procura colocar seus fiéis, antes de tudo, em atitude de arrependimento por suas infidelidades para com Deus e para com o próximo. Na passagem do século, ano 2000, comemorou-se mais um jubileu da era cristã e o papa de então, João Paulo II, em nome de toda a Igreja, pediu perdão, em cerimônia pública na Praça de São Pedro, por seus erros cometidos ao longo da história. Sustentada pela força de Deus, a Igreja empenha-se por ser o que seu Fundador, Jesus Cristo, quer ver nela: o sinal do Reino de Deus, portadora dos bens da salvação eterna.
O autor do artigo veicula a notícia da existência da comissão sobre o processo da beatificação do Papa Pio XII, desfigurando a intenção de Bento XVI ao criá-la, e fazendo seu o que lera na imprensa: “há interesse do Vaticano de melhorar relações com Israel” tendo em vista “uma viagem do papa a Israel”. Em nenhuma de suas instâncias, a Igreja usa desse expediente em assuntos dessa gravidade. A leviandade prossegue: “O melhor meio de suspender qualquer decisão sobre o tema é criar uma comissão especial”. É preciso não conhecer a Igreja para atribuir-lhe esse tipo de molecagem. Ninguém conhece tão bem Pio XII como Bento XVI. Na sua juventude e nos primeiros anos de sacerdote, foi testemunha dos procedimentos do papa de então em relação à ditadura nazista.
Creio que Bento XVI não duvida da santidade de Pio XII. Seu propósito, com a instalação da dita comissão, será para dirimir dúvidas decorrentes de ambíguas interpretações da atuação do papa diante do nazismo quando núncio apostólico na Alemanha, ao tempo da 1ª. Guerra Mundial, e já papa, no período da 2ª. Guerra Mundial. Quem o sagrou bispo e o enviou como núncio foi o papa Bento XV. Em 1937, o Papa Pio XI lançou a encíclica “Mit brennender Sorge”, condenando a doutrina do nazismo. Esta encíclica foi revista pelo Cardeal Eugenio Pacelli na função de Secretario de Estado no Vaticano. Essa carta pontifícia condenava explicitamente a absolutização dos valores étnicos e nacionais. Dizia claramente: a raça ou o povo merecem respeito, mas não podem ser elevados como culto idolátrico, nem como norma suprema de tudo e também dos valores religiosos. Por ter realizado carreira diplomática na Alemanha, Pio XII, que assumiu a Cátedra de Pedro em 1939, nutria profunda estima do povo alemão, mas não era bem visto pelo governo nazista por causa da firmeza de suas posições e pelo seu papel na redação da encíclica. Como papa, procurou manter rigorosa neutralidade entre as partes na guerra, como o fez seu predecessor durante a 1ª. Guerra Mundial. Mesmo assim, foi acusado de parcialidade pelas duas partes. A neutralidade não significava renúncia de denunciar as violações cometidas pelos nazistas nos territórios ocupados. Com a encíclica “Summi Pontificatus”, Pio XII condenou a invasão da Polônia em 1939.
O Papa Pio XII esteve sob ameaça de ser deportado por Hitler. O general Karl Wolff foi encarregado dessa operação mas conseguiu convencer o ditador das graves conseqüências de tal atitude. O “terrível segredo” do genocídio dos judeus não foi revelado pelo papa ao mundo porque, na ocasião, nem a Cruz Vermelha Internacional nem os aliados na guerra tinham provas mas só indícios do monstruoso acontecimento.
Numa obra de vários autores, “Processi alla Chiesa”, Enrico Nistri, escrevendo sobre a Igreja e os regimes ditatoriais do nosso século e descrevendo a “Tragédia do catolicismo na Alemanha sob Hitler,” faz essa referência: “Reprovou-se Pio XII de não ter revelado ao mundo o “terrível segredo” do genocídio dos judeus, a respeito do qual tanto a Cruz Vermelha Internacional quanto os aliados mantiveram também reserva por longo tempo porquanto dispunham de muitos indícios mas de poucas provas” (pág. 470). O historiador Francesco Malgeri, em “La Chiesa di Pio XII fra la guerra e dopo guerra”, no seu objetivo relato sobre o fato, dá testemunho: “conventos, seminários e igrejas, nos anos da ocupação nazista, tornaram-se o refúgio mais seguro para milhares e milhares de judeus… e marxistas, sem distinção de nacionalidade… e de ideologia política” (pág. 97).
O artigo termina afirmando ser descabido o nome do Papa Pio XII estar sempre voltando ao noticiário, o que só denigre a imagem da Igreja. Descabido, sim, é este leviano juízo do advogado, autor do artigo que acaba denegrindo sua própria imagem.
(Dom Eduardo Koaik – Bispo Emérito de Piracicaba)
Fonte: Diocese de Piracicaba/SP