“A Mariologia não constitui um entrave para a verdadeira piedade? Ela pode desviar de Cristo a atenção dos fiéis, criando obstáculos a uma devoção cristocêntrica?”
Desde cedo na era cristã, a atenção dos fiéis se voltou para Maria, Mãe de Jesus, e, consequentemente, Mãe de Deus feito homem (theotókos, em grego). A piedade para com Maria se foi desenvolvendo no decorrer dos séculos, à semelhança do que se dá com as potencialidades de uma semente destinadas a se desabrochar lentamente. Nos últimos tempos, as expressões de devoção mariana chegaram ao auge; tomadas em si mesmas ou independentemente do seu quadro real, poderiam causar estranheza, dando talvez a crer que os fiéis admitem dois Mediadores — Cristo e Maria — ou prestam a Maria o culto que só a Deus convém.
De antemão seja dito de maneira peremptória: a teologia católica professa um único Mediador entre Deus e os homens — Jesus Cristo (cf. 1 Tim 2,5) — e rejeita qualquer forma de devoção a Maria que se possa confundir com a adoração devida a Deus só. Maria é criatura; por isto todo o apreço que os fiéis lhe dedicam, tem que se referir, em última análise, ao Criador ou a Deus.
Feita esta observação, procuremos averiguar como se poderia delinear a genuína atitude dos fiéis frente a Maria ou o lugar que a piedade para com Maria deve ocupar na vida cristã. A seguir, acrescentar-se-á algo a respeito das duas tendências da Mariologia contemporânea.
Todo cristão é chamado a reproduzir em si a imagem do Cristo Jesus, ao qual o Pai quis nos tornássemos configurados (cf. Rom 8, 29). Em consequência, a espiritualidade cristã é essencialmente cristocêntrica, ou seja, voltada para Cristo, o Primogênito dentre muitos irmãos (cf. Rom 8,29). O cristão tem que prolongar em si os sentimentos do Cristo Jesus (cf. Flp 2,5): é Cristo quem nele vive, padece e triunfa (cf. Gál 2,20; Col 1,24; Flp 4,13).
Ora o cristocentrismo da piedade cristã, entre outras consequências, há de acarretar a seguinte: em relação à Mãe de Jesus — Maria — o cristão procurará comportar-se como um outro Jesus. A própria devoção a Cristo, ou melhor, a identificação com Cristo o levará a estimar Maria; ele então cultivará em si o afeto filial e a ternura dedicada que o Senhor Jesus nutria para com sua Mãe Santíssima.. Em outros termos: o genuíno cristão não pode deixar de alimentar em si uma profunda piedade mariana; tal piedade contudo jamais será independente da piedade para com Cristo, nem anterior a esta (como se os fiéis passassem de Maria a Jesus, e de Jesus ao Pai), mas será toda iluminada pela perspectiva de Cristo, toda vivida por causa de Jesus.
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Eis como D. Columba Marmion, que tanto explanou a nossa filiação adotiva em Cristo, expõe a doutrina acima:
«Nossa perfeição se deve avaliar pelo nosso grau de semelhança a Jesus Cristo… Ora o amor e o respeito de Jesus para com sua Mãe eram imensos; por conseguinte, devo procurar Imitar Jesus nesse ponto».
«Devemo-nos tornar pela graça o que Jesus é por natureza: filho de Deus e filho de Maria».
«Há dois atributos fundamentais que constituem, por assim dizer, a essência do Homem-Deus; imitá-los, reproduzi-los em nós, eis a essência da nossa santidade: Jesus é ‘Filho do Pai’ e ‘Filho de Maria’. Quanto mais formos, por Jesus, ‘filhos do Pai’ e ‘filhos de Maria’, tanto mais participaremos da sua santidade infinita, tanto mais seremos perfeitos» (textos transcritos da obra de M. M. Philipon, La doctrine spirituelle de Dom Marmion. Paris 1954, 286. 299).
A respeito das relações de Jesus com Maria nos SS. Evangelhos, cf. «P. R.» 6/1958, qu. 8.
Desta forma a devoção para com Maria aparece arraigada no âmago mesmo da vida cristã; longe de constituir uma etapa medianeira ou preliminar na demanda de Cristo, ela vem a ser a expressão mais óbvia da inserção em Cristo que constitui a artéria central da vida sobrenatural. O cristão renasce em Cristo (nada é anterior a Jesus, entre os mananciais da vida cristã) ; é também em Cristo que o fiel desenvolve a sua vida espiritual; por isto mesmo é ele devoto de Maria; a piedade para com a Mãe de Jesus não divide a atenção do cristão, mas, ao contrário, é toda inspirada e canalizada pela piedade para com Jesus.
«Jesus Cristo é nosso modelo. Assim como encontramos nele o modelo perfeito do Filho de Deus, nele também encontramos o modelo perfeito do filho de Maria».
«Jesus amou e honrou sua Mãe. A nós toca honrá-la, amá-la, regozijar-nos por todos os seus privilégios». «… Amemos Maria mais que todas as genitoras… Maria vê Jesus em cada um de nós» (D. Marmion, ob. cit. 301).
É na base destas ideias que se fala da «maternidade espiritual» de Maria em relação ao gênero humano. As palavras «Eis teu filho» que Jesus proferiu a Maria indicando João Evangelista (cf. Jo 19, 26), recobrem todos os homens na medida em que cada um é irmão de Jesus, seja por afinidade de natureza (todos são filhos de Adão), seja por afinidade sobrenatural (em virtude do batismo).
Pode-se ainda observar que a piedade para com Maria leva espontaneamente os fiéis a procurar reproduzir em si as virtudes da Mãe de Jesus (ninguém é verdadeiro devoto dos santos, caso não seja também zeloso imitador dos mesmos). Na verdade, as virtudes de Maria não são senão facetas da plenitude de perfeição de Jesus mesmo (cf. Jo 1,16); considerando a vida de Maria nos quadros que a Escritura Sagrada sucessivamente descreve (desde a Anunciação do Anjo até a descida do Espírito Santo em Pentecostes), os fiéis vão contemplando, em última análise, a maneira concreta como a vitória de Cristo se realizou na mais digna das criaturas: a humildade de Maria, seu devotamento à obra da Redenção, sua perseverança na fé, sua paciência no sofrimento são lições que devem levar os fiéis a concretizar em sua vida pessoal a figura de Jesus; é. em última instância, o Cristo que os fiéis contemplam em Maria e é a Cristo que Maria os quer fazer chegar. A devoção a Maria, assim como procede da união do cristão com Cristo, deve terminar em aumento dessa mesma união com o Senhor.
Destarte a verdadeira devoção mariana consistirá em que cada cristão se torne para Maria um outro filho, um «outro Cristo», o que só se pode dar por efeito de uma identificação crescente com Cristo ou na base de uma piedade estritamente cristocêntrica.
A propósito muito se recomenda a citada obra de Philipon: «A doutrina espiritual de D. Marmion» (tradução brasileira da Ed. AGIR), no cap. «A Mãe de Cristo».
A história dos estudos marianos tem suas fases bem características, através das quais se foi desenvolvendo a riqueza doutrinária contida no grão de mostarda ou na semente da Revelação primitiva; as proposições referentes a Maria foram sendo sucessivamente afirmadas no decorrer dos séculos, não como novas verdades de fé. mas como explicitações de verdades já professadas no credo inicial da Cristandade.
Assim se distinguem:
– o período patrístico, em que os grandes bispos e defensores da fé na Igreja primitiva elaboraram os primeiros dados da Mariologia: muito focalizaram o paralelismo entre Maria e a Igreja, ambas realizando a função da Maternidade em relação a Cristo (Maria por obra do Espírito Santo gerou o Cristo físico; a Igreja, por obra do mesmo Espírito, que age através dos sacramentos, gera o Cristo místico nas almas). O período atingiu seu apogeu no concílio de Éfeso (431), quando foi definida a divina maternidade de Maria. Seguiu-se…
– o período dos pregadores orientais (até o séc. IX): falando aos fiéis por ocasião das festas de Maria, os teólogos e pastores de almas foram exaltando as prerrogativas da Mãe de Deus: preservação de todo pecado, assunção corpórea aos céus, aspectos de seu poder intercessor. Vieram…
– os séculos XII e XIII no Ocidente, em que S. Anselmo, S. Bernardo, S. Boaventura deram notável incremento à piedade para com Maria, realçando seu papel no plano divino;
– do fim do séc. XIII a meados do séc. XVI, a teologia em geral se viu depauperada pela baixa do nível filosófico e cultural da época;
– em fim do séc. XVI registrou-se um surto dos estudos marianos, entrando muito em foco a Imaculada Conceição; o movimento partiu da Espanha e atingiu o seu auge entre 1630 e 1650; teve, porém, o seu lento declínio, de sorte que no começo do séc. XIX a literatura referente a Maria era escassa e de fraco conteúdo.
– por volta de 1840 recomeçou a ascensão: aparecimento da Imaculada e comunicação da Medalha Milagrosa a Sta. Catarina Labouré, em 1830; definição da Imaculada, em Í854; aparições da Imaculada em Lourdes (1858).
– no início do séc. XX novo Impulso foi dado à Mariologia, Impulso que, a partir de 1930, como se sabe, tomou vulto inédito na história da Teologia.
Hoje em dia duas são as diretivas predominantes nos estudos concernentes à Santa Mãe de Deus: a tendência que se poderia chamar «Cristotípica», e a «eclesiotípica». A primeira, representada principalmente por teólogos espanhóis, procura explanar tudo que há de original e próprio em Maria, tendendo a colocá-la num plano que transcende o das demais criaturas e o da Igreja; Maria aparece assim como colaboradora intimamente associada à obra de Cristo e da Redenção (é essa tendência que muito promove os estudos sobre a «Corredentora, a Medianeira Universal»…).
A orientação eclesiotípica, professada principalmente por teólogos alemães, tende, ao contrário, a ver o que há de comum entre Maria e a Igreja; Maria é tida então como protótipo e miniatura da Igreja («Ecclesia»). Tal corrente é muito mais bíblica e tradicional,… mais segura e construtiva, porque menos sutil e abstrata. Tomou forte incremento nos últimos anos, de certo modo em reação contra divagações acadêmicas da tendência «cristotípica»; é sóbria e reservada em suas publicações, ao passo que a corrente cristotípica se mostra extraordinariamente fecunda e prolixa. A orientação eclesiotípica merece todo encômio por ser uma expressão da volta às fontes muito acentuada entre os fiéis católicos contemporâneos (cf. «P. R.» 20/1959, qu. 3). É na direção eclesiotípica que se deve desejar o desenvolvimento dos estudos marianos.
Aliás, o paralelo «Maria-Igreja» vem a ser o ponto de encontro de dois outros paralelismos focalizados pelos cristãos antigos e medievais: «Eva-Maria» e «Eva-Igreja». Maria e a Igreja representam realizações grandiosas e sucessivas de uma realidade única e básica: a Maternidade sobrenatural, que gera Cristo e os cristãos. Acontece, porém, que, desempenhando essa sua missão, Maria e a Igreja não fazem senão reparar e restaurar a maternidade mesma que Eva pela primeira vez representou na história, mas representou de maneira falha, gerando para a morte, e não para a vida. Assim Maria e a Igreja constituem facetas de uma segunda Eva. verdadeira Mãe dos vivos (cf. Gên 3,20); por sua vez, Maria, a Igreja e Eva vêm a ser concretizações de uma realidade grandiosa e primordial — a Maternidade e sua função salvífica no plano de Deus.
Fazendo eco, no setor da piedade, a essa corrente mariológica tradicional ou muito reabastecida pelas fontes, é que se situa o tipo de piedade mariana indicada no primeiro parágrafo da presente resposta: o cristão deve mais e mais tornar-se um outro Cristo; em consequência há de ser genuíno «filho do Pai» e devoto filho de Maria.
Conhecendo este belo aspecto da piedade mariana, os irmãos separados já não ressentirão as dificuldades que lhes causam certas formas de devoção que o povo católico às vezes cultiva com exuberância, mas sem orientação teológica, formas de devoção, portanto, pouco representativas da mente da Igreja. Longe de ser aberração ou desvio, vê-se que uma piedade filial para com Maria, a. Mãe de Jesus, não pode deixar de decorrer da configuração do cristão ao Cristo Jesus.
Note-se, aliás, que a consideração de Maria «Mãe de Jesus» é predominante na devoção dos cristãos orientais: as imagens ou Ícones de Maria costumam apresentar a Senhora com o Menino-Deus nos braços.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)