Se lhe fizessem esta pergunta, a sua modéstia o faria responder: “Não, não especialmente”. E, no entanto, se você é batizado e vive em estado de graça santificada possui as três virtudes mais altas: as virtudes divinas da fé, da esperança e da caridade. Se cometesse um pecado mortal, perderia a caridade (ou o amor de Deus), mas ainda lhe ficariam a fé e a esperança.
Mas, antes de prosseguir, talvez seja conveniente repassar o significado da palavra “virtude”. Em religião, define-se a virtude como “o hábito ou qualidade permanente da alma que lhe dá inclinação, felicidade e prontidão para conhecer e praticar o bem e evitar o mal”. Por exemplo, se você tem o hábito de dizer sempre a verdade, possui a virtude da veracidade ou sinceridade. Se tem o hábito de ser rigorosamente honesto com os direitos dos outros, possui a virtude da justiça.
O Catecismo apresenta uma definição equivalente: “A virtude é uma disposição habitual e firme para fazer o bem. Permite à pessoa não só praticar atos bons, mas dar o melhor de si. Com todas as suas forças sensíveis e espirituais, a pessoa virtuosa tende ao bem, persegue-o e escolhe-o na prática” (n. 1803).
Se adquirirmos uma virtude por esforço próprio, desenvolvendo conscientemente um hábito bom, chamamos a essa virtude uma virtude natural. Suponha que decidimos desenvolver a virtude da veracidade. Vigiaremos as nossas palavras, cuidado de nada dizer que altere a verdade. A princípio, talvez nos custe, especialmente quando dizer a verdade nos causa inconvenientes ou nos envergonha. Um hábito (seja bom ou mau) consolida-se pela repetição de atos. Pouco a pouco se nos torna mais fácil dizer a verdade, mesmo que as suas consequências nos contrariem. Chega um momento em que dizer a verdade é para nós como que uma segunda natureza, e, para mentir, temos que fazer força. Quando for assim, poderemos dizer sinceramente que adquirimos a virtude da veracidade. E porque a conseguimos com o nosso próprio esforço, essa virtude chama-se natural.
Mas Deus pode infundir diretamente uma virtude na alma, sem esforço da nossa parte. Pelo seu poder infinito, pode conferir a uma alma o poder e a inclinação para realizar certas ações sobrenaturalmente boas. Uma virtude deste tipo – o hábito infundido na alma diretamente por Deus – chama-se sobrenatural. Entre estas virtudes, as mais importantes são as três a que chamamos teologais: fé, esperança e caridade. E chamam-se teologais (ou divinas) porque dizem respeito diretamente a Deus: cremos em Deus, em Deus esperamos e a Ele amamos.
Estas três virtudes, junto com a graça santificante, são infundidas na nossa alma pelo sacramento do Batismo. Mesmo uma criança, se estiver batizada, possui as três virtudes, ainda que não seja capaz de praticá-las enquanto não chegar ao uso da razão. E, uma vez recebidas, não se perdem facilmente. A virtude da caridade, a capacidade de amar a Deus com amor sobrenatural, só se perde por um pecado direto contra ela, pelo desespero de não confiar mais na bondade e na misericórdia divina. E, é claro, se perdemos a fé, perdemos também a esperança, pois é evidente que não se pode confiar em Deus se não se crê nEle. E a fé, por sua vez, perde-se por um pecado grave contra ela, quando nos recusamos a crer no que Deus revelou.
Além das grandes virtudes a que chamamos teologais ou divinas, existem outras quatro virtudes sobrenaturais que, juntamente com a graça santificante, são infundidas na alma pelo batismo.
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Como estas virtudes não dizem respeito diretamente a Deus, mas sim às pessoas e coisas em relação a Deus, chamam-se virtudes morais. As quatro virtudes morais sobrenaturais são: prudência, justiça, fortaleza e temperança.
Possuem um nome especial: virtudes cardeais. O adjetivo “cardeal” deriva do substantivo latino cardo, que significa “gonzo”, e são assim chamados por serem virtudes “gonzo”, pois delas dependem as demais virtudes morais. Se um homem é espiritualmente prudente, justo, forte e moderado, podemos afirmar que possui também as outas virtudes morais. Poderíamos dizer que estas quatro virtudes contem a semente das demais. Por exemplo, a virtude da religião, que nos inclina a prestar a Deus o culto devido, emana da virtude da justiça. E, de passagem diremos que a virtude da religião é a mais alta das virtudes morais.
O Catecismo confirma também este ensinamento: “Há quatro virtudes que desempenham um papel de <<dobradiça>>. Por isso são chamadas <<cardeais>>; todas as outras se agrupam em torno delas. São: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Se alguém ama a justiça, o fruto dos seus trabalhos são as virtudes, porque ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza (Sab 8,7). Estas virtudes são louvadas em numerosas passagens da Escritura sob outros nomes” (n. 1805).
É interessante mencionar duas diferentes notáveis entre a virtude natural e a sobrenatural. Uma virtude natural, precisamente porque se adquire pela pratica frequente e pela autodisciplina habitual, torno-nos mais fáceis os atos dessa virtude. Chegamos a um ponto em que, para dar um exemplo, se nos torna mias agradável ser sinceros que insinceros. Mas uma virtude sobrenatural, que é diretamente infundida e não adquirida pela repetição de atos, não torna necessariamente mais fácil a pratica da virtude. Não é difícil imaginar uma pessoa que, possuindo a virtude da fé em grau eminente, tenha tentações de duvidas durante toda a vida.
Outra diferença entre a virtude natural e a sobrenatural é a forma como cada uma cresce. Uma virtude natural como a paciência adquirida, aumenta com a prática repetida e perseverante. Uma virtude sobrenatural, porem, só aumenta pela ação de Deus, e esse aumento é concedido por Deus em proporção com a bondade moral das nossas ações. Por outras palavras, tudo o que aumenta a graça santificante aumenta também as virtudes infusas. Crescemos em virtudes tanto quanto crescemos em graça.
Que queremos dizer exatamente quando afirmamos “creio em Deus”, “espero em Deus” ou “amo a Deus”? Nas nossas conversas habituais, é fácil usarmos estas expressões com pouca precisão; é bom recordar de vez em quando o sentido estrito e original das palavras que utilizamos.
Comecemos pela fé. Das três virtudes teologais infundidas pelo Batismo, a fé é a fundamental. É evidente que não podemos esperar num Deus nem amar um Deus em quem não cremos.
A fé divina define-se como “a virtude pela qual cremos firmemente em todas as verdades que Deus revelou, baseados na autoridade no próprio Deus, que não pode enganar-se nem enganar-nos”.
O Catecismo exprime a mesma verdade de outra maneira: “A fé é primeiramente uma adesão pessoal do homem a Deus; é ao mesmo tempo, e inseparavelmente, o assentimento livre a toda a verdade que Deus revela. Enquanto adesão pessoal a Deus e assentimento à verdade que Ele revelou, a fé cristã é diferente da fé numa pessoa humana. É justo e bom entregar-se totalmente a Deus e crer absolutamente no que Ele diz. Seria vão e falso pôr tal fé numa criatura” (n. 150; cf. também os ns 151-171 e 1814-6).
Há nessas definições alguns pontos-chaves que merecem ser examinados
Em primeiro lugar, crer significa admitir algo como verdadeiro. Cremos quando damos o nosso assentimento definitivo e inquestionável a determinada afirmação. Já vemos a pouca precisão dos nossos modos de falar quando dizemos: “Creio que vai chover”, ou “creio que foi o dia mais agradável do verão”, pois em ambos os casos expressamos simplesmente uma opinião: supomos que choverá; temos a impressão de que hoje o dia mais agradável do verão. Convém ter presente este ponto: uma opinião não é uma crença. A fé implica certeza.
Mas nem toda a certeza é fé. Não digo que creio que alguma coisa se a vejo e compreendo claramente. Não creio que dois e dois sejam quatro porque é algo evidente; posso compreendê-lo e prova-lo satisfatoriamente. O tipo de conhecimento que se refere a fatos que posso perceber e demonstrar é compreensão e não crença.
Crença – ou fé – é a aceitação de algo como verdadeiro, baseando-nos na autoridade de outro, por adesão pessoal a ele. Eu nunca estive na China, mas muitas pessoas que lá estiveram asseguram-me que esse país existe; e, porque confio neles, creio que a China existe. Igualmente sei muito pouco de física e absolutamente nada de fissão nuclear. E apesar de nunca ter visto um átomo, creio na fissão nuclear porque confio na competência dos que me asseguram que isso se pode fazer e se tem feito.
Este tipo de conhecimento é o da fé: afirmações que se aceitam pela autoridade de outros em quem confiamos e a quem aderimos pessoalmente. Havendo tantas coisas na vida que não compreendemos, e tão pouco tempo livre para comprová-las pessoalmente, é fácil ver que a maior parte dos nossos conhecimentos se baseia na fé. Se não tivéssemos confiança nos nossos semelhantes, a vida pararia. Se a pessoa que diz: “Se não vejo, não creio”, ou “se não entendo, não creio”, atuasse de acordo com essas palavras, bem pouco poderia fazer na vida.
A este tipo de fé – a nossa aceitação de uma verdade baseados na palavra de outro – chamamos fé humana. O adjetivo “humana” distingue-a da fé que aceita numa verdade pela autoridade de Deus. Quando a nossa mente adere a uma verdade porque Deus a manifestou, a nossa fé chama-se divina. Vê-se claramente que a fé divina implica um conhecimento muito mais seguro que a fé meramente humana. Não é comum, mas é possível que todas as autoridades humanas se enganem em determinada afirmação, como aconteceu, por exemplo, com o ensinamento universal de que a terra era plana. Não é comum, mas é possível que todas as autoridades humanas procurem enganar, como acontece, por exemplo, com muitos sistemas totalitários.
Mas Deus não pode enganar-se a si mesmo nem enganar os outros; Ele é a Sabedoria infinita e a Verdade infinita. Nunca poderá haver nem sombra de dúvida nas verdades que Deus nos revelou, e, por isso, a verdadeira fé é sempre uma fé firme. Andar com dúvidas sobre uma verdade de fé é duvidar da sabedoria infinita de Deus ou da sua infinita veracidade. Especular se haverá três Pessoas em Deus, ou se Jesus está realmente presente na Eucaristia, é questionar a credibilidade de Deus ou negar a autoridade. Na realidade, é rechaçar a fé divina.
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Pela mesma razão, a verdadeira fé deve ser completa. Seria uma estupidez pensar que podemos escolher e ficar com as verdades e que nos agradam dentre as que Deus revelou. Dizer: “Eu creio no céu, mas não no inferno”, ou “creio no Batismo, mas não na Confissão”, é o mesmo que dizer: “Deus pode enganar-se”. A conclusão que logicamente se seguiria seria esta: “Então, por que crer em Deus?”
A fé de que falamos é fé sobrenatural, é a fé que surge da virtude divina infusa. É possível ter uma fé puramente natural em Deus ou em muitas das suas verdades. Esta fé pode basear-se na natureza, que dá testemunho de um Ser Supremo, de poder e sabedoria infinitos; pode basear-se também na aceitação do testemunho de inúmeras pessoas grandes e sábias, ou na atuação da Providência divina na nossa vida pessoal. Uma fé natural deste tipo é uma preparação para a autentica fé sobrenatural, que nos é infundida junto com a graça santificante na pia batismal. Mas é só esta fé sobrenatural, esta virtude da fé divina, que nos é infundida no Batismo, aquela que nos dá condições para crer firme e inteiramente em todas as verdades, mesmo as mais inefáveis e misteriosas, que Deus nos revelou. Sem esta fé, os que alcançaram o uso da razão não poderiam salvar-se. A virtude da fé salva a criança batizada, mas, quando se adquire o uso da razão deve haver também atos de fé.
Retirado do livro: “A Fé Explicada”. Leo J. Trese. Ed. Quadrante.