A permanente caridade da Igreja - Parte II

Durante os séculos após a morte de Carlos Magno em 814, muito dos cuidados aos pobres, até então a carga das paróquias da Igreja, migraram para os mosteiros. Nas palavras do rei S. Luiz IX da França, os mosteiros eram “o patrimônio dos pobres”; o que sempre foi desde o séc. IV. Em cada lugar onde surgia um mosteiro, nos vales e montanhas, formavam-se centros de vida religiosa organizada com escolas, modelos para a agricultura, indústria, piscicultura, reflorestamento, proteção aos viajantes, alívio para os pobres, órfãos, cuidado dos doentes, e atividade cultural como já vimos.

Durante os períodos mais escuros da Idade Média, os monges deram refúgio aos peregrinos aliviando os horrores da neve nos Alpes. Os beneditinos premostratenses, bem como as Ordens mendicantes de S. Domingos de Gusmão e de S. Francisco de Assis se destacaram na caridade. Para S. Bento “cada visitante devia ser recebido no mosteiro como se fosse o próprio Cristo”. Mas os monges não apenas esperavam os pobres virem a eles, iam atrás dos pobres e doentes para socorrê-los.

O que aconteceu com os mosteiros da Inglaterra de Henrique VIII, no séc. XVI, aconteceu também na França com a Resolução Francesa de 1789, quando os mesmos revolucionários confiscaram as propriedades da Igreja: secou a fonte da caridade. Na época o arcebispo de Aix em Provença alertou que tal roubo era uma ameaça à educação e à provisão do povo. Em 1847 a França tinha 47% hospitais a menos do que no ano do confisco e em 1799 os 50.000 estudantes das universidades se reduziram a 12000 [ Davies, Michel, “ For Altar and Throne: The Rising in the Vendée, St. Paul, Minn.: Remmant Press, 1997, pag 11].

O que poucos estudantes universitários sabem, e que muitos professores escondem, é que a Igreja Católica revolucionou a caridade na civilização ocidental tanto no seu espírito quanto em sua realização. Ninguém como a Igreja socorreu tanto os pobres, órfãos, viúvas e doentes. E isto não apenas durante um período de sua História, mas durante os vinte séculos de sua existência.  Nos tempos dos bárbaros a civilização foi abandonada; só a Igreja lutava contra a miséria, socorria os indigentes; os “pobres benditos” que viviam perto da catedral; havia os “fundos de socorro” que estavam em toda parte. Os bispos e sacerdotes amavam os pobres. Havia também hospícios, hospedarias para estrangeiros e hospitais mantidos pela Igreja; surgiram depois os leprosários e ou ‘hospitais de Lázaro”.

Os fracos, pobres, órfãos e viúvos estavam sob a proteção da Igreja. A maior parte dos rendimentos dos mosteiros era aplicado na caridade. Especialmente nas épocas de grandes calamidades, fomes e flagelos, a caridade da Igreja se fazia presente, pois o Estado pouco fazia. O povo, então, se voltava para os conventos, cujos celeiros, viveiros eram abertos ao povo. “Foram numerosas as casas de bispados e mosteiros que venderam os seus tesouros, e até mesmo os vasos sagrados, para arrancarem da fome o povo cristão que os rodeava” (Daniel Rops, V. III, 281).

A partir do séc. IX cada paróquia tinha organizado o auxílio aos pobres e possuía um registro, a “matrícula”, dos que recebiam ajuda; tudo era subsidiado pela quarta parte dos dízimos e metade das doações feitas à paróquia. Os mosteiros tinham também a sua “matrícula” sob os cuidados do monge “esmoler”.

A partir do séc. XI começaram a surgir as Ordens dedicadas à caridade. A Ordem hospitalar mais antiga foi a dos “Antoninos”; nasceu em Vienne, em 1095, na paróquia onde estavam as relíquias de Santo Antão. Foi a Ordem dos “Irmãos Hospitalares de S. Antão”. Em 1178 foi fundada por Guy de Montpelier a “Ordem do Espírito Santo”, hospital para crianças abandonadas; no final do séc. XIII tinha cerca de 800 casas. Em 1150 surgiu em Bolonha os “Crucifeu”, e na Boêmia os “Stelliferi” em 1160. Em 1099, após a tomada de Jerusalém pelos cruzados surgiu a “Ordem de S. Lázaro”, para cuidar dos leprosos do Oriente. Foram trazidos também para a França por Luiz VII e cresceram muito na Europa e na Ásia, onde chegaram a ter 3000 leprosários. Inocêncio IV a transformou em “Cavaleiros de São Lázaro” que existem até hoje.

Assim, com o esforço conjunto da hierarquia da Igreja, das novas Ordens caritativas e da generosidade popular, surgiu uma multidão de instituições de caridade. É de se registrar que a Igreja pedia que as crianças abandonadas fossem deixadas nas portas dos mosteiros, para não serem mortas. Estas eram cuidadas pela Ordem do Espírito Santo ou pelos hospitalários de São João de Jerusalém, que vieram do Oriente para prestar seus serviços na Europa. Alguns desses asilos de crianças eram enormes e elas só saíam daí trabalhando. Havia casas especializadas em leprosos, o grande mal daquele tempo. A Igreja tinha aprendido com o “beijo de S. Francisco de Assis no leproso”, a ver neles um irmão
em Cristo. S. Luiz de França, Santa Isabel da Hungria e Santa Hedwiges se destacaram nessa caridade. Só na França em 1225, o rei Luiz VIII comprovou a existência de mais de dois mil leprosários. S. Roque (1293-1327), patrono dos leprosos, consagrou toda a sua vida ao cuidado deles, tendo morrido leproso.

É impossível enumerar todas as formas de caridade assumidas pelas pessoas da Igreja. Algumas se consagraram à recuperação das prostitutas, essa chaga social. Inocêncio III numa bula de 1198 prometeu remissão total dos pecados aos homens piedosos que desposassem essas mulheres reconduzindo-as ao bom caminho. Pedro o Eremita fundou uma Congregação para salvá-las; e surgiram outras com a mesma finalidade. A mais célebre foi a Ordem das “Irmãs penitentes de Santa Madalena”, as ”madalenetas”.

Também os viajantes e peregrinos eram protegidos pela caridade cristã. Na Itália, os Hospitalários d’Altapaseio guiavam os viajantes nos pântanos perigosos de Luca; na Espanha, os Cavaleiros de Santiago protegiam os peregrinos de Compostela; na Palestina, essa era uma das funções dos Templários.

A Cristandade não era uma noção abstrata, mas sim a própria força de Cristo animando a sociedade. Há a caridade que vai mais longe ainda. Não podemos deixar de falar aqui das “Ordens redentoras”, que na Ásia e na África; esses heróis que partiam para os países muçulmanos e se ofereciam para substituir os fiéis cativos e escravos correndo risco de morte. São as Ordens fundadas em 1198 por São João da Mata (os Trinitários); em 1223 pelo francês São Pedro Nolasco (os Mercedários – Nossa Senhora dos Mercês) e por S. Raimundo de Peñafort, espanhol. Desde a sua fundação até a revolução Francesa (1789), estas duas Ordens libertaram mais de 600.000 cativos, entre os quais Cervantes, o mestre espanhol.

Essa caridade da Igreja ultrapassa em muitas as nossas obras sociais e a Previdência Social de hoje. O regulamento dos hospitais de Paris, em 1230, dizia que se deviam receber “os pobres e doentes como ao Senhor”. Em todos os testamentos parisienses, da Idade Média, há uma doação para o “Hotel-Dieu” de Paris (o Hotel de Deus).

E a Igreja, em 2000 anos, nunca precisou lançar mão da ideologia marxista para fazer caridade, jogando os ricos contra o pobres e promovendo a luta de classe e ações fora da lei; ao contrário, sempre a condenou como um grande mal. A caridade de Cristo, dos Apóstolos, dos Santos e das Santas, de Madre Teresa de Calcutá, de S. Francisco de Assis, de S. Camilo de Lellis, de S.João Bosco…, nunca precisou de uma ideologia materialista e inimiga de Deus para a impulsionar. A força propulsora desta caridade bimilenar sempre foi a oração, a Eucaristia, o amor a Deus e aos irmãos, vendo no que sofre o Cristo que padece. É por isso que não entendemos e nem aceitamos as raízes  da teologia da libertação.  Prof. Felipe Aquino  


Professor Felipe Aquino é viuvo, pai de cinco filhos. Na TV Canção Nova, apresenta o programa “Escola da Fé” e “Pergunte e Responderemos”, na Rádio apresenta o programa “No Coração da Igreja”. Nos finais de semana prega encontros de aprofundamento em todo o Brasil e no exterior. Escreveu 73 livros de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola e Canção Nova. Página do professor: www.cleofas.com.br Twitter: @pfelipeaquino