A doutrina da justificação mediante a fé, acompanhada pela negação do livre-arbítrio e integrada com a afirmação de certeza da salvação naquele que crê com confiança, passou a partir de 1516 a ser o centro dominante do pensamento teológico de Lutero, que ele, com o orgulho que lhe era próprio chamava de “Evangelho” e “princípio material do protestantismo” (Bihlmeyer, p. 27). Daí veio o repúdio aos Sacramentos, ao sacerdócio ministerial, do sacrifício, das indulgências, da hierarquia; isto é, de todo um sistema de uma Igreja baseada no direito divino.
Sobre a certeza da salvação, Lutero parece não ter dado a devida atenção às Escrituras, que diz:
“Meus amados, trabalhai pela vossa salvação, com temor e tremor” (Fl 2,12).
“Vigiai e orai, porque o espírito é forte, mas a carne é fraca” (Mt 26,41).
“Assim, pois, aquele que julga estar de pé, tome cuidado para não cair” (1Cor 10,12).
“Mas se queres entrar para a Vida, guarda os mandamentos” (Mt 19,16-17).
“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54).
“Aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 10,22).
À vista disso, a Igreja ensina que ninguém tem estado de graça confirmado, e se não lutarmos contra o pecado, podemos sim perder a salvação que Cristo nos conquistou!
A Reforma protestante se baseou principalmente em quatro pontos doutrinários:
1. Somente a Bíblia como a fonte da fé. Lutero se baseou na passagem bíblica de São Paulo: “O justo vive pela fé” (cf. Rm 1,17). Isto causou a “erosão da Tradição”: quinze séculos de assistência do Espírito Santo ao Magistério da Igreja foram abandonados! Lutero desprezou totalmente as fundamentais promessas de Jesus aos Apóstolos na Santa Ceia:
“E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco. É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece, mas vós o conhecereis, porque permanecerá convosco e estará em vós” (Jo 14,15-17). “Quando vier o Paráclito ensinar-vos-á toda a verdade” (Jo 16,13).
Lutero iniciou seu protesto declarando que a Bíblia podia ser interpretada por qualquer crente “até mesmo pela humilde criada do moleiro; antes, até por uma criança de nove anos”. Mais tarde, no entanto, quando os anabatistas, zwinglianos, e outros, o contrariaram, a Bíblia tornou-se para ele “um livro de heresia”, muito obscuro e difícil de entender.
2. O livre-exame da Bíblia: podia cada crente interpretá-la conforme seu entendimento; foi a “erosão da autoridade que Jesus deu ao Magistério da Igreja”: Quem vos ouve, a Mim ouve; quem vos rejeita, a Mim rejeita; quem Me rejeita, rejeita Aquele que me enviou (Lc 10,16). Desprezo a uma promessa fundamental de Jesus, que sempre quis que a Palavra de Deus não fosse interpretada erroneamente.
Em Ingolstadt, em 1577, Cristóvão Rasperger citava duzentas interpretações diferentes das simples palavras da consagração, “Isto é o meu Corpo”, interpretações sustentadas pelos sequazes dos Reformadores (The Faith of Millions, J. A. O’Brien, Our Sunday Visitor, Huntington, Ind. 1938, p. 227; O’Brien ; p. 31).
Em 1525 Lutero deplorava tristemente a anarquia religiosa a que o seu próprio princípio da interpretação privada da Escritura dera nascimento:
“Há tantas seitas e crenças quantas cabeças. Um não terá nada a fazer com o Batismo; outro nega o Sacramento; um terceiro acredita que há outro mundo entre este e o último dia. Alguns ensinam que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros dizem aquilo. Não há rústico, por mais rude que seja, que, se sonhar ou fantasiar alguma coisa, isto não deva ser o sussurro do Espírito Santo, e ele próprio um profeta” (Grisar, Luther, IV, 386-407, B. Herder, St. Louis, 1917; O’Brien, p. 32).
Lutero não deu importância alguma ao ensinamento do apóstolo São Pedro em sua segunda Carta, quando se refere às Cartas de São Paulo, evidenciando que há passagens difíceis de serem interpretadas, e que, sem dúvida, podem causar graves erros de interpretação por parte do fiel:
“É o que ele [Paulo] faz em todas as suas cartas, nas quais fala nestes assuntos. Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras” (2Pd 3,16).
Cristo confiou ao Magistério da Igreja o dom da infalibilidade ao interpretar a doutrina. Quem vos ouve a Mim ouve, quem vos rejeita a Mim rejeita, e quem Me rejeita, rejeita Aquele que me enviou (Lc 10,16). O nosso Catecismo ensina: “Cristo quis conferir à Sua Igreja uma participação em Sua própria infalibilidade” (cf. §889), e que “Cristo dotou os pastores do carisma de infalibilidade em matéria de fé e de costumes” (cf. §890).
São Paulo diz a Timóteo que “a Igreja é a coluna e o fundamento da Verdade” (1Tm 3,15). Mas, quem é esta Igreja, se ela for apenas – como quis Lutero – uma instituição espiritual, que só existe na alma das pessoas? Todos nós sabemos que a Bíblia é um dos livros mais difíceis de ser compreendido, pois foi escrito em duas línguas (hebraico e grego) e num arco de história de 2000 anos.
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3. Somente a fé, não às obras. Foi a “erosão da caridade” para Lutero. Jesus não nos salva retirando os nossos pecados, mas nos salva apenas “encobrindo” os nossos pecados. De acordo com Lutero, os pecados continuam em mim, mas o Pai não os vê. E dizia: “Peque à vontade, mas tenha fé”. Para nós, cristãos católicos, Cristo destrói os nossos pecados, não os encobre.
Lutero rejeitou também a Carta de São de Tiago (chamada por ele de “epístola de palha”) uma vez que a Palavra não correspondia com sua negação sobre a necessidade de boas obras! Na Carta aos Romanos (cf. 3,28) São Paulo escreve: “Julgamos que o homem é justificado pela fé”. Em sua tradução Lutero acrescentou a palavra “apenas”. Quando Emser, o questionou sobre essa alteração do texto, ele respondeu: “Se o seu papista o incomodar por causa da palavra “apenas”, diga-lhe imediatamente: “Dr. Martinho Lutero quer que assim seja. Quem não quiser ter a minha tradução, mande-a as favas… Dr. Martinho Lutero assim o quer, e ele é um doutor acima de todos os doutores no Papado” (A Reforma Luterana, Vozes, 1959, p. 35).
Na Conversa de Mesa (p. 137), Lutero diz: “Quem diz que o Evangelho exige obras para a salvação, digo redondamente, é um mentiroso” (Reforma Luterana, p. 38). Ele escreveu a Melanchton em 1º de outubro de 1521:
“Seja pecador e peque fortemente, mas creia mais fortemente ainda… Devemos pecar, já que somos o que somos… O pecado não nos separará Dele, ainda quando cometemos fornicação ou morticínio, mil e mil vezes ao dia” (Briefwechsel, Vol. III, p. 208, apud Reforma Luterana, p. 39).
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Isso porque Lutero dizia em sua obra O Cativeiro Babilônico:
“O cristão ou homem batizado não pode, ainda quando o quisesse, perder a sua alma por quaisquer pecados, grandes que sejam, a menos que recuse crer…” (Idem).
O ensinamento da Igreja sempre foi de que o pecado é essencialmente um mal. O Catecismo da Igreja ensina:
“Quem peca fere a honra de Deus e seu amor, sua própria dignidade de homem chamado a ser filho de Deus e a saúde espiritual da Igreja, da qual cada cristão é uma pedra viva. Aos olhos da fé, nenhum mal é mais grave que o pecado, e nada tem consequências piores para o próprio pecador, e para a Igreja e para o mundo inteiro” (cf. §1488-1489). Jamais qualquer permissão pode ser dada para alguém pecar!
Lutero também não se importou ao que Jesus disse no livro do Apocalipse pelo evangelista São João: “Eu Sou aquele que sonda os rins e os corações, porque darei a cada um de vós segundo as suas obras. Eis que venho em breve, e a minha recompensa está comigo, para dar a cada um conforme as suas obras” (cf. Ap 2,23; 22,12).
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E também a outros textos bíblicos:
“Porquanto todos nós teremos de comparecer perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 15,10). “Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? Assim também a fé, se não tiver as obras, está morta em seu isolamento” (Tg 2,14-17).
O que São Paulo rejeita quando diz que o justo vive pela fé (Rm 1,17), é o valor das obras humanas, que visam a merecer a salvação sem a fé em Cristo. O Apóstolo afirma que a fé deve ser ativa pela caridade. “Se não tiver caridade, sou como o um sino que soa, ou como um címbalo que retine… Mesmo que eu tivesse toda a fé a ponto de transportar montanhas, se eu não tiver caridade eu não sou nada (1Cor 13,2); o que vale é “a fé que opera pela caridade” (Gl 5,6); mas, acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição (Cl 3,14). Como desprezar a caridade e as boas obras?
“Todo homem será julgado segundo suas obras” (Rm 2,6). “Cada um receberá sua recompensa segundo o seu trabalho” (1Cor 3,8). “E estais certos de que cada um receberá do Senhor a recompensa do bem que tiver feito, quer seja escravo ou livre” (Ef 6,8). “Por que o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai com seus anjos, e então recompensará cada um segundo as suas obras” (Mt 16,27).
Além disso, Lutero não reconhecia o sacerdócio ministerial pelo sacramento da Ordem, instituído por Jesus na Santa Ceia. Foi a “erosão da Liturgia e dos Sacramentos”. Não reconhecia o Santo Sacrifício da Missa, nem os sufrágios pelas almas do Purgatório. A Confissão deve ser diretamente a Deus! Para Lutero, a Eucaristia era a presença de Cristo apenas no momento da consagração: não acreditava na transubstanciação.
O que sabemos é que tudo isso causou uma enorme divisão no Cristianismo. A Europa cristã foi rachada; a túnica inconsútil de Cristo, que os soldados sortearam no Calvário, foi rasgada, esgarçada.
Jacob Andreae, cônego e chanceler de Tubingen, disse que “com a pregação da doutrina da justificação pela fé sozinha, as antigas virtudes desapareceram e uma multidão de novos vícios apareceu no mundo”. Bucer, que ajudou a estabelecer o protestantismo em Estrasburgo, dizia: “a corrupção dá cada dia novos largos passos na igreja evangélica”. E disse Melanchthon: “todas as águas do Elba não seriam suficientes para eu chorar sobre os males da Reforma”. E o próprio Lutero disse que “não há um só dos nossos evangélicos que não seja sete vezes pior do que antes de pertencer a nós” (The Protestant Revolution and the Catholic Reformation in Continental Europe, p. 366; apud O’Brien, p. 33).
O historiador Hallan, filho protestante de um clérigo também protestante, expressou: “Sustentando que a salvação depende da fé como condição única, ele não somente negou a importância, em sentido religioso, de uma vida virtuosa, mas afirmou que todo aquele que sentisse dentro de si mesmo plena segurança de que seus pecados lhe eram perdoados tornava-se absolutamente incapaz de pecar, ou pelo menos de perder o favor de Deus enquanto, mas só enquanto a segurança continuasse” (Litterature of Europe, Part I, p. 303; O´Brien, p. 33).
A túnica inconsútil de Cristo que os soldados sortearam foi dividida em muitos pedaços, muitas comunidades eclesiais:
Luterana – Martinho Lutero (1517) Alemanha;
Episcopal – Henrique VIII (1534) Inglaterra;
Reformada (Calvinista) – João Calvino (1541) Suíça;
Menonita – Meano Simons (1550) Holanda;
Presbiteriana – John Knox (1567) Escócia;
Congregacional – Rebert Browee (1580) Inglaterra;
Batista – John Smith (1604) Holanda;
Quacker – John Fox (1649) Estados Unidos;
Metodista – John Wesley (1739) Inglaterra;
Mórmon – Joseph Smith – 1830 (Estados Unidos);
Adventista – William Miller – 1831 (Estados Unidos);
Exército da Salvação – William/Catarina Booth (1885) Inglaterra;
Ciência Cristã – Mary Backer (1875) Estados Unidos;
Pentecostais – Charles Parham (1900) Estados Unidos;
Testemunhas de Jeová – Charles Taze Russell (1916) Estados Unidos;
Amigos do Homem – Alexandre Freytag (1920) Suíça;
Universal do Reino de Deus – Edir Macedo Bezerra (1977) Brasil.
Retirado do livro: “Para Entender a Reforma Protestante”. Prof. Felipe Aquino. Ed. Cléofas.