Conforme os antigos, o dia da “morte” é o do natalício do cristão.
Como entender isto?
Na verdade, pode-se dizer que o cristão nasce em duas etapas. A primeira ocorre após nove meses de gestação no seio materno; o bebê que então vem à luz, chora, porque perde o aconchego e a proteção de que desfrutava no seio materno. Aos poucos, porém, vai-se adaptando ao novo ambiente, adquire sua autonomia e encontra seu lugar ao sol; aí prepara novo tipo de aconchego, ao qual espontaneamente se apega e do qual não quer ser desinstalado; vive então uma nova fase de sua gestação, já não aos cuidados de sua mãe, mas sob os seus próprios cuidados; sim, o que nasceu do seio materno, for um ser ainda embrionário, cheio de potencialidades não desabrochadas; estas são desdobradas e atualizadas pelo indivíduo no decorrer desta vida terrestre; é ele quem vai definir sua estatura física e espiritual ou sua configuração definitiva.
Quando o Pai o julga oportuno, chama-o para a mansão definitiva num momento dito “morte”, que na verdade é a Segunda etapa do nascimento dessa pessoa; é então que acaba de nascer, pois se acha com a sua personalidade acabada. Desta maneira vê-se mais uma vez que a morte, para o cristão, não é propriamente morte, mas passagem para a plenitude da vida.
Bem se entende isto, pois a morte é a consumação de um processo cotidiano de morte ao pecado e ao velho homem, para que se vá formando no cristão a estatura de filho de Deus. Em seu sentido mais profundo, é a resposta positiva generosa que o cristão dá ao convite do Pai para que vá gozar do consórcio dos filhos de Deus na casa do Pai. É por isto que S. Inácio de Antioquia (+ 110 aproximadamente), condenado a ser lançado às feras no Coliseu de Roma, escrevia aos fiéis amigos que tencionavam interceder junto às autoridades romanas para lhe evitar o martírio:
“É bom para mim morrer a fim de me unir ao Cristo Jesus… Aproxima-se o momento em que serei dado à luz… Não ponhais empecilho a que eu viva, não queirais que eu morra” (Aos Romanos 6, 1s).
O cristão, sim, só é homem perfeito na medida em que é filho do dia, da luz, da vida definitiva. É desta que ele vive, trazendo-a arraigada em seu íntimo. Em conseqüência, a morte pode tornar-se ardentemente desejada, como revela o mesmo S. Inácio:
“Escrevo a vós, possuído do amor da morte…; há, em mim, uma água viva que fala e dentro de mim diz: “Vem para o Pai” (Aos Romanos 7, 2).¹
Para dizer o que Sto. Inácio de Antioquia dizia, não é necessário que o cristão seja condenado às feras no Coliseu; basta-lhe o martírio de cada dia vivido na fidelidade a Cristo; o Espírito Santo lhe dirá sempre: “Vem para o Pai”.
Sereno, pois, e alegre caminha o cristão na terra de encontro ao seu nascimento para a vida eterna. Na realidade, só há um tipo de angústia que o afeta: o pecado, pois este significa justamente separação de Deus ou da verdadeira vida. Diante do pecado, sim, o cristão ressente todo o horror que a perspectiva da morte física suscita no não cristão. Caso, porém, esteja isento de pecado, o discípulo de Cristo não se deixa abalar pelas vicissitudes desta peregrinação nem pela própria morte; sabe que nada disto lhe pode tirar o verdadeiro tesouro que ele traz em seu íntimo, vida que Deus lhe deu e que só Deus, ou a sua infidelidade voluntária, podem extinguir.
São estas algumas reflexões que o mês de novembro sugere, mês que o cristão inicia com o olhar voltado para o Além.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”D. Estevão Bettencourt, osb.Nº 485 – Ano 2002 – Pág. 433.
¹ A água viva de que fala Inácio, é símbolo do Espírito Santo, conforme Jo 7, 37-39.