A santidade está acima do tempo e da história

A santidade é a mesma ontem, hoje e sempre. É santo quem viveu a vida completamente em Deus, sem guardar nada para si. Pelo batismo o cristão torna-se filho de Deus em Jesus Cristo, tornar-se «filho no Filho». Assim, é santo – ou melhor, tende para a santidade – quem procura sempre agir com fidelidade ao projeto para si traçado por Deus e que na sua conduta responde com generosidade aos impulsos da graça, abandonando-se como um filho nas mãos do Todo-poderoso.

Mas, ao mesmo tempo, a santidade está profundamente encarnada na realidade humana. As vidas dos santos nos mostram como a identificação com Jesus Cristo se realizou nas suas circunstâncias concretas de vida. Durante séculos predominou, na biografia dos santos, um gênero literário que pôs de lado a resposta cotidiana aos impulsos da graça para exaltar antes os gestos heróicos, cobertos mesmo por um halo de lenda. Convém, pois, esclarecer que estas almas não se santificaram graças a atos esporádicos, mas antes pela fidelidade e coerência com que souberam ser heróicas, esforçando-se por atingir a vontade de Deus no cumprimento dos seus deveres ordinários de cada dia. É esse aspecto que devemos imitar. Se as suas vidas se tivessem limitado a atos fora do comum, certamente não teriam sido santos, mas mesmo assim poderiam ser apresentados como modelos de imitação. De qualquer maneira, a santidade abrange de modo particular também a cultura, entendida como o horizonte global em que se movimenta o mundo. Os santos permitiram que se criassem novos modelos culturais, novas respostas aos problemas e aos grandes desafios dos povos, novos progressos da humanidade no caminho da história. Os santos são como faróis: indicaram aos homens as possibilidades de que eles dispõem. Por isso são interessantes também culturalmente, independentemente da abordagem religiosa e analítica.

Exemplos: O mais clamoroso destes é dos santos fundadores de congregações religiosas que se dedicaram aos doentes, como São João de Deus (fundador dos chamados “Fatebenefratelli”) e São Camilo de Lélis (que deu origem aos Camilianos). A sua ação no século XVI apresentou verdadeiramente o início dos hospitais para todos na Europa, numa época em que a saúde era patrimônio exclusivo dos mais ricos, ao passo que os pobres muitas vezes morriam na rua, abandonados por toda a gente. Penso igualmente em todos aqueles que inauguraram, a partir do século XVII, instituições escolares que apoiaram inúmeros jovens: desde São João Baptista de La Salle (fundador dos Irmãos das Escolas Cristãs) até à beata Rosa Venerini (fundadora das Mestras Pias Venerini) e, em épocas mais recentes, São João Bosco (fundador dos Salesianos) e Dom Luca Passi (fundador das Irmãs de Santa Dorotéia).

Num mundo em mudança, os santos não só não ficam de forma histórica ou culturalmente, mas estão se tornando um tema ainda mais interessante e digno de crédito. Numa época em que se desmoronam as utopias coletivistas, numa época de desconfiança e de inapetência pelo teórico e ideológico, vai-se despertando um novo interesse pelos santos, figuras singulares nas quais se encontra não uma teoria nem uma simples moral, mas antes um verdadeiro «projeto de vida» – que deve ser contado, descoberto pelo estudo, amado pela devoção, aplicado pela imitação. Só podemos alegrar-nos com esse despertar do interesse por eles, porque eles são de todos, são um patrimônio da humanidade, que se estende além de si própria num desenvolvimento que, ao mesmo tempo que honra o homem, presta também glória a Deus.

(Trecho extraído do livro “Como se faz um santo”, p.18-20, de Cardeal Saraiva Martins)


Sobre o Cardeal

José Saraiva Martins nasceu a 6 de janeiro de 1932 em Gagos de Jarmelo, Portugal. Tendo entrado ainda jovem para a Congregação dos Missionários Filhos do Coração Imaculado de Maria, foi ordenado sacerdote a 16 de março de 1975. Docente de Teologia e Reitor da Pontifícia Universidade Urbaniana, durante o período da sua atividade acadêmica publicou vasta e notória obra de Teologia. Em 1988 foi nomeado arcebispo secretário da Congregação para a Educação Católica. Foi de 30 de maio de 1998 até 9 de julho de 2008 Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Elevado a cardeal pelo Papa João Paulo II em 21 de fevereiro de 2001, foi-lhe atribuído o título da basílica de Nossa Senhora do Sagrado Coração.

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