O milagre e o martírio na vida dos santos

Já o Papa Inocêncio IV (falecido em 1254), na sua Glosa às Decretais do Papa Gregório IX, exigia para a canonização que fossem provadas a «fides et excellentia vitae» (fé e excelência de vida) e os milagres realizados por intercessão de um servo de Deus. E o Papa Bento XIV, embora admita se poder chegar à prova certa da santidade heroica de um servo de Deus, também insiste nos milagres como forma de obter a confirmação divina para um não mártir.

Note-se, no entanto, que os milagres não suprem um eventual defeito de provas de heroicidade das virtudes, por isso, na prática plurissecular da Congregação, os milagres nunca são examinados antes da declaração sobre a heroicidade das virtudes. Gostaria, igualmente, de esclarecer que os milagres realizados, por vezes, enquanto os servos de Deus se encontram vivos não constituem uma prova de santidade: só os que ocorreram após a morte, por sua intercessão, confirmam definitivamente essa santidade com autoridade divina.

O número requerido para a beatificação e a canonização varia na história do direito eclesiástico. Na legislação do Código de Direito Canônico de 1917, para a beatificação eram exigidos dois milagres (e em alguns casos até mesmo três ou quatro), com a possibilidade de dispensa no caso de um mártir cujo martírio fosse evidente. A partir do ano santo de 1975, começou-se a dispensar o segundo milagre para a beatificação e, assim, se chegou à atual prática de um só milagre para a beatificação e outro a seguir para a canonização.

Deixando de lado a questão da variedade do número [dos milagres exigidos], que é um fato puramente jurídico e dependente dos tempos e das práticas, devo esclarecer que, no milagre, a Igreja vê a «marca de Deus» sobre a própria reflexão e sobre o próprio trabalho. As investigações testemunhais, os exames clínicos, as consultas teológicas desenrolam-se sempre com seriedade e acuidade até se atingir a certeza moral; nesta, porém, reside sempre a avaliação humana. Consciente desta precariedade, num espírito de humildade e expectativa, a Igreja invoca um sinal do Alto. O milagre é pois entendido como confirmação da fé, como uma espécie de marca aposta por Deus, por meio da qual Ele garante a santidade do candidato aos altares.

Cardeal Saraiva Martins fala sobre a “esperança cristã”. Confira:

Na nossa Congregação, a cada vez que se proclama um beato ou um santo, sentimos que os milagres são uma realidade. O que é que se pode dizer, por exemplo, quando uma respeitável comissão de médicos e cientistas, dentre os quais personalidades laicas, perante uma cura misteriosa afirma que não existem explicações científicas? Se há católicos que não acreditam nos milagres é apenas um problema de formação e informação. E aqui importa, como Igreja, trabalhar mais nas paróquias, nas dioceses, entre as pessoas, porque os milagres são uma realidade da vida de todos os dias que deve ser explicada, precisamente para combater a dúvida que pode surgir em qualquer pessoa.

Mártires: Tão rigorosa como a verificação da heroicidade das virtudes sempre foi a verificação do suposto martírio, que é válido quando se verificam simultaneamente diversas circunstâncias: a) a morte violenta do cristão; b) a aceitação da morte por fidelidade a Cristo; c) a ação do perseguidor como forma de ódio contra a fé ou contra outra virtude cristã. Juntamente com a prova do martírio material e formal, exigia-se ainda a prova do milagre. De fato, podia haver no presumível mártir ou no perfeito o martírio. O milagre, neste caso, serve de confirmação dada por Deus para garantir a existência do martírio.

Com a nova legislação, faz-se hoje a beatificação dos mártires sem a aprovação prévia de um milagre. A razão é sobretudo teológica. O Vaticano II, ao definir na Lumem gentium o martírio como «dom exímio e prova suprema de caridade», acrescentou que «o martírio é concedido a poucos». Esta expressão indica claramente que o martírio, como oferta da própria vida a Cristo, não é um fato puramente humano, mas sim, um dom do Alto, uma graça. Com outras palavras, o mártir aceita livremente a morte sob a ação do Espírito Santo, que o ilumina e o apoia interiormente, a ponto de exprimir o maior ato de caridade. Por conseguinte, onde é seguro o ato do martírio, é igualmente certa a intervenção de Deus, tornando assim supérflua a confirmação por meio de um milagre. Poder-se-ia dizer que o martírio é já em si um milagre que ultrapassa as forças pessoais daquele que se imola por Cristo.

(Trecho extraído do livro “Como se faz um santo” de Cardeal Saraiva Martins; págs. 90-93)

Sobre o Cardeal

José Saraiva Martins nasceu a 6 de janeiro de 1932 em Gagos de Jarmelo, Portugal. Tendo entrado ainda jovem para a Congregação dos Missionários Filhos do Coração Imaculado de Maria, foi ordenado sacerdote a 16 de março de 1975. Docente de Teologia e Reitor da Pontifícia Universidade Urbaniana, durante o período da sua atividade acadêmica publicou vasta e notória obra de Teologia. Em 1988 foi nomeado arcebispo secretário da Congregação para a Educação Católica. Foi de 30 de maio de 1998 até 9 de julho de 2008 Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Elevado a cardeal pelo Papa João Paulo II em 21 de fevereiro de 2001, foi-lhe atribuído o título da basílica de Nossa Senhora do Sagrado Coração.

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