O “Livro das Moradas ou Castelo Interior” de Santa Teresa de Jesus como mapa didático para o percurso espiritual do cristão
CREPALDI, Flavio Luiz
RESUMO
Este artigo analisa o percurso de santificação, ou crescente intimidade com Deus, tal como estabeleceu Santa Teresa de Jesus em sua obra magna “O Livro das Moradas ou Castelo Interior”, sintetizando-o e verificando sua conformidade com o pensamento de outros doutores da Igreja. Tal análise teve como objetivo investigar sua posição como referência universal no caminho de santidade e, para a teologia espiritual, como um mapa didático para o crescimento espiritual do cristão. Isso porque, embora a Igreja exorte a necessidade da santificação pessoal, existem poucas direções claras para este fim. Para tanto, utilizou-se de uma pesquisa qualitativa, de revisão bibliográfica, analisando-se a obra da autora e daqueles que puderam complementar ou explicitar melhor seu pensamento. Estabeleceu-se, a partir deste método, a convicção de que a obra oferece um padrão comparativo seguro para a análise de espiritualidades ou experiências espirituais, determinando sua correspondência ou não com os ensinamentos da Igreja Católica (em suas teologias dogmática, moral e espiritual), bem como do seu grau de desenvolvimento ou posicionamento quanto ao percurso espiritual rumo à intimidade plena com Deus.
Palavras-chave: Moradas. Castelo Interior. Santificação. Teologia Espiritual.
1. INTRODUÇÃO
Segundo o Papa Francisco,
[…] para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque «esta é, na verdade, a vontade de Deus: a [nossa] santificação» (1 Ts 4, 3). Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num momento determinado da história, um aspeto do Evangelho. Esta missão tem o seu sentido pleno em Cristo e só se compreende a partir d’Ele (FRANCISCO, 2018, p.10).
É dever do cristão, portanto, a santificação pessoal, buscando-a a partir da inspiração do próprio Deus e do exemplo daqueles que já cumpriram suas missões pessoais de santificação. Dentre essas missões de santificação pessoal, que se desenvolveram em resposta ou adequando-se às realidades do seu tempo, destacamos, para o objetivo deste artigo, a espiritualidade carmelita. Esta espiritualidade foi consolidada pelos doutores da Igreja: Santa Teresa de Jesus (1515-1582), São João da Cruz (1542-1591) e Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face (1873-1897); mas, ainda recebe novas luzes e esclarecimentos de novos santos e santas da Ordem do Carmelo, como Santa Elizabete da Trindade (1880-1906), Santa Benedita da Cruz (1891-1942) e o Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (1894-1967).
Ao estudo sistemático das espiritualidades cristãs, conhecido no século XX como Teologia Ascético-Mística, hoje denominamos Teologia Espiritual. Segundo Luiz Balsan,
A Teologia Espiritual estuda as experiências espirituais, de modo particular, daquelas pessoas reconhecidas na Igreja pela sua santidade. Dessas experiências, que poderíamos denominar significativas ou qualificadas, tira conclusões e estabelece princípios que podem orientar a vida cristã dos demais (BALSAN, 2019, p.27).
Embora a tradição da Igreja seja riquíssima nessas experiências qualificadas, o século XXI trouxe à tona muitas outras formas de espiritualidades, promovidas por teólogos de tradição católica ou protestante e, até mesmo, de outras religiões e culturas. Grande parte delas em total desacordo com a revelação ou a Teologia Sistemática Católica, composta pelas Teologias Dogmática e Moral. Estas visões distorcidas do espiritual e da espiritualidade geram verdadeiras correntes denominadas espiritualismos. O espiritualismo, segundo Albuquerque (2006, p.320), “é uma malformação da espiritualidade que o torna incapaz de qualquer relação com a teologia”. Permanece, portanto, sendo uma experiência espiritual pessoal, mas desprendida dos ensinamentos da Igreja Católica. Ressalta-se também que, mesmo espiritualidades originárias no seio da Igreja Católica, podem carecer do caráter de qualificado à medida que não foram propostos por pessoas que tiveram sua santidade de vida reconhecida oficialmente pela Igreja, após as necessárias investigações da causa dos santos.
Diante dessa realidade plural e, em muitos momentos, caótica, é necessário estabelecer caminhos seguros que promovam a intimidade com Deus, mas que, ao mesmo tempo, estejam em perfeita consonância com a doutrina da Igreja Católica. Estes novos caminhos espirituais que continuarão a surgir devem, necessariamente, serem capazes de reprodução por outros cristãos, sob pena de não serem uma verdadeira espiritualidade promovida pelo Espírito Santo. Também devem estar em conformidade com os ensinamentos teológicos da Igreja, que é uma tradução fiel da própria revelação de Deus, afastando, assim, o risco de serem somente espiritualismos. Não se trata de impedir novas formas de espiritualidade propostas pelo próprio Espírito, mas de encontrar um parâmetro que seja universal, atemporal e forneça bases comparativas para validar outras experiências particulares. Isto mostrará quais espiritualidades possuem bases sólidas ou não, antes mesmo de um reconhecimento oficial eclesiástico sobre a santidade de vida do seu autor.
Este artigo é, portanto, um estudo explicativo do “Livro das Moradas ou Castelo Interior”, de Santa Teresa de Jesus, identificando-o como um modelo ou mapa do percurso espiritual do cristão da conversão (ou batismo) à santidade plena e oferecendo-o como base comparativa segura para a validação de novas formas de espiritualidade católica, muito além da espiritualidade carmelita.
Para este fim, descreveu-se esta obra de Santa Teresa, mestra da oração e doutora da Igreja, identificando-a como um percurso espiritual universal e atemporal. Elaborou-se uma síntese dos principais pontos deste caminho, utilizando-se dos diversos estágios propostos pela própria autora, fornecendo um mapa das moradas, como ela mesma denomina cada grupo dos sete níveis de união com Deus.
Embora os títulos de “Santa” e “Doutora” conferidos à autora, qualifiquem imediatamente seus escritos pela Igreja, como em perfeita consonância com a Revelação Cristã, identificou-se na doutrina dogmática, bases que corroborem e expliquem os principais pontos defendidos por Santa Teresa. Do mesmo modo, buscou-se na literatura espiritual cristã, percursos que se assemelharam e confirmaram o caminho das Moradas de Santa Teresa, estabelecendo comparação e diálogo entre eles e ressaltando, assim, o apoio referencial e universal que a obra pode oferecer numa análise de antigos e novos percursos espirituais.
2. A CONSTRUÇÃO DA SANTIDADE
O Concílio Vaticano II (1963-1968) encerrou, definitivamente, uma discussão aberta a muitos séculos entre teólogos, santos e místicos sobre a necessidade da santificação pessoal de todo cristão. A Constituição Dogmática Lumen Gentium (CONCÍLIO VATICANO II, 1964) assegura que todos os homens e mulheres, sem exceção, são chamados à santidade. Mais recentemente, através de uma Exortação Apostólica, o Papa Francisco (2018, p.7) retomou o tema e o reafirmou dizendo que “o que quero recordar com esta Exortação é sobretudo a chamada à santidade que o Senhor faz a cada um de nós”.
No entanto, se a santificação pessoal é um imperativo, por que tão poucos se santificam? Antonio Royo Marin argumenta que
[…] a razão fundamental que explica tantos fracassos no caminho rumo à santidade daqueles que já o tentaram alguma vez, consiste em não ter empregado suficientemente os meios necessários e adequados para consegui-la (ROYO MARIN, 2016, p.39).
Vê-se, portanto, que, além de um esforço pessoal, devem existir meios indispensáveis ou adequados. É notável também que, alguns séculos antes, o Doutor da Igreja, São João da Cruz já fizera o mesmo diagnóstico, em sua obra Subida do Monte Carmelo, dizendo que
causa lástima ver muitas almas às quais Deus dá talento e graças para irem adiante e, – se quisessem ter ânimo, – chegariam a esse alto estado de perfeição; e ficam paradas, sem progredir, no seu modo de tratar com Deus, não querendo ou não sabendo, por falta de orientação, desapegar-se daqueles princípios (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.137).
Embora plenamente de acordo com a explicação de Royo Marin, o doutor carmelita acrescenta uma causa a mais à dificuldade de santificação: a falta de orientação. Não se trata de uma falta de modelos, pois, segundo Balsan (2018, p.40-41), a espiritualidade cristã é extremamente multifacetada, manifestando-se de formas diversificadas na história e lugares. Isso não é fortuito mas, necessário, porque uma única forma de espiritualidade cristã não conseguiria exprimir toda a riqueza da vida de Deus em Jesus, nem estaria sempre ajustada às grandes e constantes mudanças históricas que o mundo atravessa.
Sendo o próprio Deus princípio e finalidade de toda espiritualidade cristã, o beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (2015, p.297) frisa que o estudo das escolas de espiritualidade é necessário para encontrar um caminho e avançar por ele, mas, em última análise, é o próprio Espírito Santo quem guia para Deus por este caminho que é o próprio Jesus Cristo.
Se um único Espírito conduz por um único caminho, é possível buscar uma síntese, mesmo nas mais diversas formas de espiritualidade. Caso contrário, teríamos uma multiplicidade sem unidade.
Em busca de uma “doutrina em comum” sobre a santidade e o percurso de santificação, foi que o Pe. Gracián pediu a Santa Teresa de Jesus a redação de sua obra “Castelo Interior ou Livro das Moradas” (TERESA DE JESUS, 2018, p.614). Esse caráter universal da obra, logo após concluída, foi imediatamente testemunhado por um de seus primeiros censores, o Pe. Rodrigo Alvarez, relatando que
o que sinto e julgo disso é que tudo isto que leu para mim são verdades católicas segundo as divinas letras e doutrinas dos santos. Quem for lido na doutrina dos santos, como é o livro de Santa Gertrudes, e nas obras de Santa Catarina de Sena e Santa Brígida e outros santos e livros espirituais, entenderá claramente ser este espírito da madre Teresa de Jesus muito verdadeiro, pois que passam neles os mesmos efeitos que passaram nos santos (TERESA DE JESUS, 2018, p.619).
Contemporaneamente à sua redação, já era perceptível que o livro atendia à universalidade necessária a um caminho espiritual, constatando-se suas semelhanças de princípios com os escritos de outras santas da Igreja.
3. O CASTELO INTERIOR
Este “Livro das Moradas ou Castelo Interior”, escrito em 1577 por Santa Teresa, é uma síntese de seu caminho espiritual enquanto a mesma era reconhecida por seus pares como exemplo de uma intimidade ardente com Deus. Descreve o percurso que a alma desenvolve desde o momento de sua conversão pessoal e rompimento total com o pecado mortal, até a plena união com Deus nesta vida, que, segundo os graus estabelecidos pela Santa em seu Castelo, trata-se da sétima morada.
Com uma característica didática, o livro estabelece sete estágios na vida de união com Deus ou santidade, as sete moradas do Castelo Interior. Segundo o beato Maria-Eugênio,
Santa Teresa penetra sucessivamente em cada morada para descrever, narrar e aconselhar, como mestra já familiarizada com tais lugares. […] Distinguiu sete moradas e, por conseguinte, seu tratado terá sete partes, cada uma delas dividida em vários capítulos (MARIA-EUGÊNIO DO MENINO JESUS, 2015, p.47).
Esse castelo, que não é nada mais que a própria alma, possui uma dignidade ímpar à medida que é habitado pelo próprio Deus, o Senhor do Castelo. Segundo Santa Teresa de Jesus (2018, p.631), Deus mesmo sustenta o castelo da alma, habitando na sétima morada, e procura atrair o homem ao seu convívio próximo. Embora se viva sob e com tamanha dignidade, continuamente este contato íntimo é perdido ao se preocupar não com o interior do castelo, ou o conhecimento da própria alma, mas com suas cercanias, com as muralhas deste castelo que são o corpo, as vivências sociais e preocupações com o mundo à volta.
Romper com o que há de desvirtuado e pecaminoso no mundo, permanecendo em estado de graça, é a condição básica para penetrar neste castelo interior em busca dAquele que É. Santa Teresa esclarece que o estado de pecado, ou ausência da graça santificante, é impedimento do processo de santificação visto que, estando em pecado, “nenhuma coisa se lhe aproveita; e daqui vem que todas as boas obras que fizer, […] são de nenhum fruto para alcançar a glória” (TERESA DE JESUS, 2018, p.635). Neste caminho, os motores que impulsionam a alma rumo à sua morada central, são a reflexão e a oração. Através da reflexão, toma-se conhecimento de si mesmo, das dificuldades e misérias, corrigindo-as através da negação do egoísmo e da autossuficiência. Pela oração, abandona-se sob as inspirações de Deus, aumentando a intimidade com seu hóspede e criador, até conseguir, finalmente, a união das vontades, onde não existe mais diferença entre o querer do homem e de Deus.
3.1 AS SETE MORADAS
Seguindo o percurso delineado pela doutora da Igreja, as primeiras moradas são aquelas em que os que se dispuseram a erradicar o pecado mortal, entram no caminho do conhecimento de si mesmo e da intimidade com Deus. No entanto, “como ainda estão embebidas no mundo e engolfadas em seus contentos e desvanecidas em suas honras e pretensões, […] facilmente estas almas são vencidas, ainda que andem com desejos de não ofender a Deus” (TERESA DE JESUS, 2018, p.640-641). Faz-se necessário, segundo Teresa de Jesus (2018, p.641), desvencilhar-se de tudo aquilo que não seja essencial para a sobrevivência ou que provoque a perda de foco da vida espiritual.
Para Santa Teresa de Jesus (2018, p.643) é fundamental, nestas moradas, a lembrança da vivência do amor a Deus e ao próximo com cada vez mais perfeição, evitando-se o julgamento e a murmuração, sob pena de se perder a paz e causar tormentos a si mesmo e aos que o rodeiam.
As segundas moradas, “é dos que têm já começado a ter oração” (TERESA DE JESUS, 2018, p.646) e em comparação às anteriores, para Santa Teresa de Jesus (2018, p.647), a alma que antes estava muda e surda, começa a possuir os sentidos e o entendimento mais preparados, embora as virtudes ainda sejam incipientes e incapazes de fornecer sustentação para as lutas diárias. Motivada por esta constatação, a doutora reafirma que imaginar “que havemos de entrar no céu e não entrar em nós, conhecendo-nos e considerando nossa miséria […] é desatino” (TERESA DE JESUS, 2018, p.651-652) e que é grande a necessidade nesse momento de se aproximar de Cristo meditando sua vida, sua paixão e todo o mistério da redenção humana que toca cada cristão particularmente.
Aquelas almas que avançam para as terceiras moradas,
são muito desejosas de não ofender Sua Majestade, ainda dos pecados veniais se guardam, e amigas de fazer penitência, suas horas de recolhimento, gastam bem o tempo, exercitam-se em obras de caridade com os próximos, muito concertadas em seu falar e vestir e governo da casa, os que as têm (TERESA DE JESUS, 2018, p.657).
Por outro lado, pela própria ciência dessas virtudes, Santa Teresa de Jesus (2018, p.657) constata que os que frequentam estas moradas acabam por se achar com um certo direito à intimidade com Deus. Recorda, portanto, a imperativa necessidade de humildade, perseverança e desapego pois, a ausência destas disposições, causam securas e provações. As dificuldades na oração, nestas moradas, para Santa Teresa de Jesus (2018, p.659) são pedagogia de Deus para promover a humildade e estabelecer uma paz interior mais sólida. Aqui, deve-se “não fazer em nada a sua vontade” (TERESA DE JESUS, 2018, p.664), mas a de Deus, em concentrar-se mais em corrigir suas próprias faltas do que as alheias.
As quartas moradas são de transição, ou seja, “também natural junto com o sobrenatural” (TERESA DE JESUS, 2018, p.688). Isso quer dizer que, à dedicação do homem em buscar viver as virtudes e a oração em sua vida, une-se, agora, a iniciativa do próprio Deus atuando na alma. Santa Teresa de Jesus (2018, p.670) diferencia aqui os contentos que nascem no ser humano e o elevam para Deus e os gostos que são movimentos vindos diretamente de Deus e que repercutem no natural. Os contentos “se obtêm pela meditação […] [vindo] enfim com nossas diligências” (TERESA DE JESUS, 2018, p.677), por isso a alegria e satisfação que causam, embora recebidos pelo contato com Deus, são originados na operação natural da inteligência. Os gostos são gerados pelo próprio Deus, que o “produz com grandíssima paz e quietude e suavidade do muito interior de nós mesmos” (TERESA DE JESUS, 2018, p.677) e “parece que se vai dilatando e alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que não podem ser ditos, nem a alma sabe entender o que é que lhe é dado ali” (TERESA DE JESUS, 2018, p.678). Sendo, portanto, uma iniciativa sobrenatural que atua e repercute no natural.
São nessas moradas que a concentração almejada na oração recebe uma infusão da graça divina, gerando um recolhimento intenso que a santa define como sobrenatural, porque não equivale a uma interiorização própria do esforço humano (TERESA DE JESUS, 2018, p.681). Esse recolhimento faz Santa Teresa de Jesus (2018, p.679) ter certeza de que a vontade do homem passa a ter uma primeira e incipiente união com a vontade de Deus. Ele gera, também, a oração de quietude, definida como onde os sentidos “abandonam as coisas exteriores em que estavam alienados e se metem no castelo” (TERESA DE JESUS, 2018, p.682). Embora a iniciativa seja de Deus, Santa Teresa de Jesus (2018, p.683) manifesta o firme parecer que Ele só promove este tipo de intimidade com aqueles que procuraram ativamente se afastar dos “negócios” e preocupações do mundo.
Por isso, neste início de vida mística das quartas moradas, deve-se “senão deixar a alma nas mãos de Deus, faça o que quiser dela, com o maior descuido de seu proveito que puder e maior resignação à vontade de Deus” (TERESA DE JESUS, 2018, p.684). A meta desta intimidade crescente é que a alma,
Como vai conhecendo mais sua grandeza [de Deus], tem-se já por mais miserável; como tem provado já os gostos de Deus, vê que é um lixo os do mundo, vai pouco a pouco se apartando deles e é mais senhora de si para fazê-lo (TERESA DE JESUS, 2018, p.686).
As quintas moradas se caracterizam pelo momento onde o cristão, alimentado pela graça, pela vivência dos sacramentos e pela vivência concreta das virtudes, alcança uma união mais íntima com Deus. Santa Teresa de Jesus (2018, p.697-698) utiliza aqui a comparação da alma com o bicho da seda e do modo como ela precisa criar um casulo para se transformar em borboleta, ou seja, nova criatura. O cristão tece esse casulo à medida que utiliza os sacramentos da Igreja, lê bons livros, escuta boas pregações e, deste modo, começa um invólucro, que é o próprio Cristo, onde irá morrer para o mundo e nascer para uma nova vida. Este pequeno serviço de se dispor à ação de Deus, vivendo em graça santificante, tem como grande prêmio a própria união com Ele pelos méritos de Jesus Cristo e “assim juntar nossos trabalhinhos com os grandes que padeceu Sua Majestade e que tudo seja uma coisa” (TERESA DE JESUS, 2018, p.699). O protagonismo, no entanto, permanece sendo de Deus “porque verdadeiramente a alma ali não faz mais que a cera quando outro imprime o selo, que a cera não imprime a si, só está disposta” (TERESA DE JESUS, 2018, p.702).
Nesta fase, esta união na oração, por breve que seja, produz efeito tal
[…] que a mesma alma não se conhece a si; […] Não sabe de onde pôde merecer tanto bem, [mas, exteriormente] logo lhe começa a ter de padecer grandes trabalhos, sem poder fazer outra coisa, [enquanto interiormente tem] desejos de penitência grandíssimos, o de solidão, o de que todos conhecessem a Deus (TERESA DE JESUS, 2018, p.699).
Santa Teresa de Jesus (2018, p.700) esclarece que, nestas quintas moradas, o cristão tem por pouca conta todo o serviço que prestou à Igreja até ali e, ao mesmo tempo, começa a compreender como os santos construíram as grandes obras no mundo como instrumentos de Deus. Também salienta o cansaço que o lidar com as coisas do mundo provoca naqueles que já começam a experimentar o verdadeiro repouso do Senhor.
Embora, até aqui, havia tratado de favores sobrenaturais, argumenta que “a verdadeira união se pode muito bem alcançar, com o favor de nosso Senhor, se nós nos esforçamos por procurá-la” (TERESA DE JESUS, 2018, p.705). Abre-se, portanto, uma possibilidade de um protagonismo do homem, também nestas moradas, porque se, pelo caminho anteriormente tratado, a graça da união foi matando “o bicho da seda”, nesta segunda via “é preciso que, vivendo nesta [morada], o matemos nós” (TERESA DE JESUS, 2018, p.706). É essencial, neste momento, muito mais generosidade e amor ativo para se estar unido com a vontade de Deus, amando-o e amando ao próximo. Santa Teresa De Jesus (2018, p.707) frisa que, entre esses dois amores, é o amor ao próximo que demonstra realmente a existência do amor a Deus. Além disso, nestas moradas, é fundamental para se auto avaliar,
[…] andar com particular cuidado e aviso, olhando como vamos nas virtudes: se vamos melhorando ou diminuindo em algo, em especial no amor umas com as outras e no desejo de ser tida como a menor e em coisas ordinárias; que se olharmos nisso e pedirmos ao Senhor que nos dê luz, logo veremos o lucro ou a perda (TERESA DE JESUS, 2018, p.714).
São as sextas moradas onde Santa Teresa de Jesus (2018, p.718) coloca a alma com um grande amor a Deus, querendo em tudo e de forma imediata unir-se a Ele, seu esposo. Deus, no entanto, aproveita-se desta disposição ardente para purificá-la e, por isso, é a hora de enfrentar “os trabalhos interiores e exteriores que padece até que entra na sétima morada!” (TERESA DE JESUS, 2018, p.718). O cristão das sextas moradas, embora realize grandes obras para Deus, é, exteriormente, duramente combatido por amigos e inimigos, que fazem de tudo para difamá-lo e impedir os projetos que conduz, e, interiormente, sofre o que São João da Cruz definiu como sendo a “noite escura da alma”: uma aparente ausência total de Deus. Ou, pela pena da santa de Ávila,
[…] são muitas as coisas que a combatem com um aperto interior de maneira tão sensível e intolerável, que eu não sei a que pode ser comparado, senão aos que padecem no inferno; porque nenhum consolo se admite nesta tempestade (TERESA DE JESUS, 2018, p.722).
Este estado, que pode ser intermitente para não ser por demais insuportável à alma, deve ser vivido pacientemente porque,
Enfim, que nenhum remédio há nesta tempestade, senão aguardar a misericórdia de Deus, que de repente, com uma só palavra sua ou uma ocasião que acaso sucedeu, tira tudo tão depressa, que parece que não houve nuvem naquela alma, segundo fica cheia de sol e de muito mais consolo (TERESA DE JESUS, 2018, p.722-723).
Nesta difícil transição para as últimas moradas, Santa Teresa de Jesus (2018, p.724-725) recomenda que, enquanto aguarda, o melhor remédio é se dedicar aos trabalhos exteriores, notadamente os de caridade para com os próximos, entendendo que são justamente estes combates exteriores e interiores que lhe permitem crescer no amor a Deus, purificando suas intenções e elevando-se cada vez mais próximo ao seu objetivo. Deus, portanto, não está mais longe e, por vezes, a alma sente seu toque interior, embora Ele ainda não queira se manifestar plenamente. Esta união mais perfeita que as anteriormente alcançadas, aproxima estreitamente a alma a Deus, de modo que “aqui estão todos os sentidos e potências sem nenhum embevecimento, mirando o que poderá ser, sem estorvar nada nem poder acrescentar aquela pena deleitosa nem tirá-la” (TERESA DE JESUS, 2018, p.727).
As manifestações sobrenaturais recebidas pela alma nestas moradas são largamente tratadas pela santa carmelita. Por vezes Deus se comunica através de “uma inflamação deleitosa” (TERESA DE JESUS, 2018, p.728); por meio de palavras interiores e exteriores (TERESA DE JESUS, 2018, p.730-732); visões intelectuais (TERESA DE JESUS, 2018, p.765); visões imaginárias (TERESA DE JESUS, 2018, p.738-739 e p.768-772); arroubamentos ou êxtases (TERESA DE JESUS, 2018, p.737-738 e p.750) e raptos (TERESA DE JESUS, 2018, p.748). Santa Teresa de Jesus (2018, p.756) informa que Deus vai instruindo e preparando a alma para a união definitiva das sétimas moradas enquanto provoca a humildade ao dar-lhe uma consciência cada vez mais clara de suas limitações e pecados.
Finalmente, as sétimas moradas, são onde “quase nunca há securas nem alvoroços interiores dos que tinha em todas as outras às vezes, senão que está a alma em quietude quase sempre” (TERESA DE JESUS, 2018, p.801). Isso ocorre porque esta é a morada onde Deus habita e,
Assim neste templo de Deus, nesta morada sua, só Ele e a alma se gozam com grandíssimo silêncio. Não há para que bulir nem buscar nada o entendimento, que o Senhor que o criou quer sossegá-lo aqui, e que por uma fresta pequena olhe o que se passa (TERESA DE JESUS, 2018, p.802).
A entrada neste grau superior de união com Deus, o maior durante a presente vida, é determinada
[…] por certa maneira de representação da verdade, [onde] se mostra a ela a Santíssima Trindade, todas as três pessoas, com uma inflamação que primeiro vem a seu espírito à maneira de uma nuvem de grandíssima claridade, e estas Pessoas distintas, e por uma notícia admirável que é dada à alma, entende com grandíssima verdade ser todas as três Pessoas uma substância e um poder e um saber e um só Deus (TERESA DE JESUS, 2018, p.789).
Este contato com o Deus Uno e Trino, é constante após esta primeira revelação e nunca desaparece. Santa Teresa de Jesus (2018, p.790) traz, como efeito dessa união, que denomina “matrimônio espiritual”, uma paz constante na alma e grande disposição; um “esquecimento de si” (TERESA DE JESUS, 2018, p.798); um desejo “de que se faça a vontade de Deus nelas” (TERESA DE JESUS, 2018, p.799); “um grande gozo interior quando são perseguidas, com muita mais paz […], e sem nenhuma inimizade com os que lhes fazem mal ou desejam fazer” (TERESA DE JESUS, 2018, p.799); “um desapego grande de tudo e desejo de estar sempre ou sozinhas ou ocupadas em coisa que seja proveito de alguma alma” (TERESA DE JESUS, 2018, p.800) e
[…] se soubessem com certeza que ao sair a alma do corpo há de gozar de Deus, não fazem caso, nem pensar na glória que têm os santos; não desejam por então ver-se nela: sua glória têm posta em se puderem ajudar em algo o Crucificado, em especial quando veem que é tão ofendido (TERESA DE JESUS, 2018, p.799).
Mesmo que a união da alma com Deus seja plena, a doutora salienta “que não lhes falta cruz, salvo que não as inquieta nem faz perder a paz, senão passam depressa, como uma onda, algumas tempestades, e torna a bonança” (TERESA DE JESUS, 2018, p.803). Para Santa Teresa de Jesus (2018, p.805), essas dificuldades exteriores e interiores são verdadeiras graças que vêm para fortalecer a alma e ajudá-la a imitar a Cristo em seu sofrimento e muitos trabalhos. Ou seja, como esclarece bem a fundadora para suas carmelitas, “para isto é a oração, filhas minhas; para isto serve este matrimônio espiritual: para que nasçam sempre obras, obras” (TERESA DE JESUS, 2018, p.806).
Segundo Santa Teresa de Jesus (2018, p.807-808), portanto, o objetivo da contemplação espiritual desenvolvida até a sétima morada é o serviço à Igreja e ao próximo, pois a paz conquistada no interior através da oração é para enfrentar as tempestades exteriores. Salienta que a oração e a contemplação não devem ser buscadas para uma satisfação interior, mas para a vivência das virtudes e o exercício das mesmas no mundo e em prol dos outros. É urgente aqui a união de Marta e Maria, da vida ativa e contemplativa, onde a oração promoverá contato com Deus e forças para servir ao próximo.
3.2 BASES SISTEMÁTICAS DO CASTELO INTERIOR
Santa Teresa de Jesus, por viver em um momento de intensa atividade da inquisição espanhola, preocupou-se constantemente com a perfeita adequação de suas obras às verdades defendidas pela Igreja Católica. No livro tratado, tanto no prólogo quanto no epílogo (TERESA DE JESUS, 2018, p.627; p.812), a autora afirma que o erro doutrinário, se houvesse, não seria proposital, e que a mesma se submeteria a qualquer correção que fosse necessária por parte da Igreja.
Por seu caráter trinitário e cristocêntrico, no entanto, não há o que corrigir na obra. O beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (2015, p.125-127) louva a doutora não só por revelar a Trindade através de Cristo mas, por meio de suas moradas, fornecer uma doutrina pormenorizada desta aproximação da alma ao seu redentor e consequente transformação até a união plena com Deus.
As experiências e relatos da doutora também vieram a traduzir na prática o que antes era acessível somente na análise da Teologia Dogmática. Essa convergência, não só beneficia a práxis teresiana, mas dá comprovação empírica às reflexões de, principalmente, Santo Tomás de Aquino.
Como exemplo de sua correção dogmática, tomemos uma de suas principais afirmações no Castelo Interior (TERESA DE JESUS, 2018, p.796): Deus realmente habita no interior de cada alma humana como um rei em seu castelo. O beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (2015, p.57-60) considera essa premissa como a base de toda a doutrina espiritual de Santa Teresa e a explica justificando a presença de Deus na alma justa de duas maneiras que se completam e que se denominam “presença ativa de imensidade” e “presença objetiva”. A primeira destas presenças é gerada pela necessidade de Deus sustentar, por seu poder, tudo aquilo que criou, sob pena da criatura simplesmente deixar de existir se Ele deixar de atuar com sua ação conservadora (também denominada criação contínua). Esta primeira presença de Deus age em todo universo criado, mas não explica, por si só, as relações de intimidade do ser humano com Deus. É, com efeito, a “presença objetiva” de Deus, gerada pela graça santificante, que o inclui na vida trinitária, estabelecendo relações novas e distintas. A graça adquirida pelo batismo, e mantida pela vigília contra o pecado mortal, dá poder à alma de desabrochar perante os dons de Deus. Assim, se pelo primeiro modo de presença, Deus preenchia a alma, mas morava nela como um estranho, agora Ele pode se entregar a ela como um amigo e um pai. Pela compreensão do Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (2015, p.61), é a sobreposição destas duas presenças que faz com que Deus habite na alma como em seu templo preferido nesta terra.
Deve-se destacar, que esta doutrina não surgiu nos escritos de Santa Teresa, mas possui ampla base na Teologia Tomista, anterior ao pensamento teresiano em três séculos. Em sua Suma Teológica, na questão sobre a presença de Deus nas coisas, Santo Tomás de Aquino pontua que
Deus está em tudo por seu poder, porque tudo está submetido a seu domínio. Ele está em tudo por sua presença, porque tudo está descoberto e à mostra de seus olhos. Ele está em tudo por sua essência, porque está presente em todas as coisas como causa do ser de todas elas (Tomás de Aquino, 2016, v. 1, p.226).
Existem, portanto, três formas distintas da presença de Deus na alma: por poder, por presença e por essência. Entretanto, posteriormente, na questão sobre a missão das pessoas divinas, Santo Tomás de Aquino (2016, v.1, p.687-688) determina um quarto modo da presença de Deus que só convém à criatura racional, a qual nomeia “graça santificante”. É através dela que Deus não somente se encontra na criatura racional, mas nela habita como em seu templo. Essa graça santificante é o próprio Espírito Santo dado em missão e passando, por isso, a habitar o homem real e objetivamente, tal qual determina a visão teresiana.
Outra faceta fundamental na obra de Santa Teresa de Jesus (2018, p.651-652) é a determinação de se alcançar a união plena com Deus através da reflexão e da oração, ou seja, através da atividade racional da alma em contato com seu criador e consigo mesma. Novamente a teologia tomista corrobora essa visão quando trata do que consiste a bem-aventurança do homem. Segundo Santo Tomás de Aquino (2016, v.3, p.59-61) o homem só pode conseguir a felicidade plena, ou bem-aventurança, através da atividade da alma e ao se dirigir Àquele que é o próprio bem universal. Entendendo que o específico da alma é sua capacidade racional, vê-se que a reflexão sobre si mesmo e a relação intelectual com Deus através da fé que se concretiza na oração, propostos por Santa Teresa, são perfeitamente harmônicos com a doutrina de Santo Tomás.
Fica claro, portanto, que a certeza de Santa Teresa sobre a presença de Deus na alma e a possibilidade do homem dirigir-se a Ele e viver uma vida de intimidade plena a partir de seu próprio interior, não só corresponde à doutrina aceita pela Igreja Católica, bem como é apenas a ponta do iceberg da teologia desenvolvida mais a fundo e extensamente por Santo Tomás de Aquino, principalmente em sua Suma Teológica.
3.3 PARALELOS COM A DOUTRINA TERESIANA
O livro “Castelo Interior” de Santa Teresa é, segundo Adolphe Tanquerey (1961, p.686), “a coroa e síntese de todas as suas Obras, onde a Santa descreve com clareza e precisão os sete graus principais de oração correspondentes aos sete estados da vida espiritual”. Ou seja, consegue unir uma correta teologia sobre a ascensão da alma até Deus, a partir da oração, com uma orientação voltada essencialmente para a vida cotidiana. Esta visão é reforçada pelo teólogo e padre Juan Arintero ao esclarecer que o desenvolvimento das moradas de Santa Teresa
[…] ilumina vivissimamente o que parecia um caos, e assim veio a servir de norma e de base a quase todos os autores que posteriormente trataram de penetrar nos íntimos segredos da psicologia sobrenatural e declarar os verdadeiros progressos da vida mística, que antes pareciam enigmas indecifráveis (ARINTERO, 2017, p.69).
Dentre estes autores que se serviram da doutrina de Santa Teresa e ajudaram-na a ser melhor compreendida, deve-se dar especial relevância à seu contemporâneo e auxiliar na implementação da reforma carmelita, São João da Cruz. Suas contribuições, principalmente na fase contemplativa da vida espiritual, que começa a partir das quartas moradas, renderam-lhe o título de Doutor Místico da Igreja. Embora o escopo deste artigo não permita aprofundar e pormenorizar o paralelismo entre as obras destes dois doutores, salienta-se, a título de exemplo, a correspondência entre a evolução mística das moradas teresianas e as três noites da alma propostas por São João da Cruz.
Se Santa Teresa de Jesus (2018, p.657-664) ressalta, nas terceiras moradas, as dificuldades da oração, a necessidade de se promover a humildade e a busca incessante de se fazer a vontade de Deus, São João da Cruz esclarece que esta se trata da primeira noite, a noite passiva dos sentidos, onde os principiantes da contemplação
Já percorreram, durante algum tempo, o caminho da virtude, perseverando em meditação e oração; pelo sabor e gosto que aí achavam, aos poucos se foram desapegando das coisas do mundo e adquiriram algumas forças espirituais em Deus. (…) Eis que de repente os mergulha Nosso Senhor em tanta escuridão que ficam sem saber por onde andar, nem como agir pelo sentido, com a imaginação e o discurso (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.460-461).
Esse momento de aridez, a princípio gerado pela própria soberba adquirida pelo progresso espiritual, como bem nota Santa Teresa de Jesus (2018, p.657) e São João da Cruz (1996, p.443), deve ser aceito como parte do processo natural de assenhoramento divino da alma, reduzindo-a à passividade e a preparando para a vida mística. Santa Teresa (TERESA DE JESUS, 2018, p.664) direciona para a busca de uma completa negação da própria vontade nestas moradas. São João da Cruz, por outro lado, dedica dois capítulos de seu segundo livro intitulado “Subida do Monte Carmelo” (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.228-238) e seis capítulos de seu livro “Noite Escura” (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.462-485) para explicar em detalhes o desnudamento espiritual promovido por Deus que precede e acompanha a entrada na vida mística.
A segunda noite, ou noite ativa dos sentidos, ocorre nas quintas moradas, onde a ação de Deus é sentida e mais docilmente recebida pela alma, quando esta já tem forças suficientes para também colaborar em sua purificação. São João da Cruz (1996, p.736) relata que cabe à alma um duplo dever: ao mesmo tempo respeitar a ação de Deus e sua primazia, enquanto favorece essa ação por um abandono pacífico e silencioso. Fica patente o paralelo entre o bicho da seda teresiano das quintas moradas (TERESA DE JESUS, 2018, p.698), que se isola para se transformar; sua metáfora da alma como a cera que recebe a marca do anel (TERESA DE JESUS, 2018, p.702) e as indicações de São João da Cruz nesta noite ativa de se esvaziar e de negar todas as apreensões naturais e sobrenaturais (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.327-328), ou seja, enquanto se acolhe passivamente as ações de Deus, busca-se, ativamente, negar os sentidos, para que estes não retomem a primazia do movimento da alma.
Finalmente, a terceira noite de São João da Cruz, também conhecida como noite escura da alma, por causar trevas, pena e tormento (JOÃO DA CRUZ, 1996, p.494), relaciona-se com a difícil transição das sextas moradas de Santa Teresa (TERESA DE JESUS, 2018, p.722). Correspondência esta que já foi ilustrada neste artigo quando se sintetizou as moradas teresianas e será mais uma vez tratado logo abaixo quando se analisar a correspondência com Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face.
De fato, outro paralelo importante que, ao mesmo tempo, valida o conteúdo do livro de Santa Teresa e o esclarece, encontra-se na obra desta outra santa e doutora carmelita. Sua pequena via (TERESA DO MENINO JESUS, 2015, p.223), como ficou conhecida, compõem-se de ensinamentos práticos perfeitamente alinhados com o final das quintas moradas de Santa Teresa e passagem para as sextas moradas. A título de exemplo, compare-se a segunda via ou modo de se avançar nas quintas moradas “matando o bicho da seda” (TERESA DE JESUS, 2018, p.706) e buscando amar ao próximo vivamente (TERESA DE JESUS, 2018, p.707) com as orientações de Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face (2015, p.233-240) para se viver a perfeita caridade no dia a dia, nas mínimas coisas, com aqueles que compartilham as atividades diárias. Santa Teresinha faz eco à sua fundadora demonstrando o caminho de se crescer no amor a Deus através da vivência prática do amor ao irmão. Vê-se uma perfeita confluência entre a segunda via de Santa Teresa nas quintas moradas e a pequena via de Santa Teresinha em seu caderno autógrafo conhecido como “Manuscrito C”: ambos caminhos levam às sextas moradas.
À grande tribulação externa e interna das sextas moradas, citada por Santa Teresa e chamada por noite escura por São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face (2015, p.216-218) responde em seu caderno autógrafo registrado como “Manuscrito B”, com sua metáfora do pequeno passarinho. A alma, na agitação das sextas moradas, é como um pequeno pássaro assolado por inúmeras tempestades. Ele percebe sua meta, o Sol que é Jesus, mas não tem forças para levantar vôo; sofre com o abandono, o frio, as asas molhadas e sua própria debilidade que, por vezes, o faz esquecer de sua meta e distrair-se com as ninharias da terra. Mas, novamente aqui, existe um pequeno caminho, uma pequena via para a alma através dessas moradas: o abandono confiante na onipotência e misericórdia divinas. Diante de todas as suas incapacidades
[…] o passarinho nem vai ficar aflito. Com audaz abandono, quer ficar fitando seu divino Sol; nada poderá assustá-lo, nem o vento nem a chuva, e se nuvens escuras vierem esconder o Astro de Amor o passarinho não trocará de lugar. Às vezes, é verdade, o coração do passarinho é investido pela tempestade, parece não acreditar que existem outras coisas além das nuvens que o envolvem. Esse é o momento da felicidade perfeita para o pobre serzinho frágil. Que felicidade para ele ficar aí, assim mesmo; fixar a luz invisível que foge à sua fé!!! (TERESA DO MENINO JESUS, 2015, p.216).
Vê-se, além de uma perfeita descrição da noite escura das sextas moradas, um caminho prático e brilhante para atravessá-lo, o da confiança em Deus. Esta visão está plenamente alicerçada em Santa Teresa de Jesus (2018, p.805), que cita esse momento como graça e não castigo, e São João da Cruz (1996, p.522-523) que chama essas penas de “obscuras e amorosas” pois, fazem padecer, ao mesmo tempo que inflamam o amor, produzindo deleite.
4. METODOLOGIA
A metodologia empregada para a construção deste artigo foi a pesquisa de revisão bibliográfica, qualitativa, dedutiva e indutiva. Analisou-se os referenciais teóricos e fontes bibliográficas para ampliar o entendimento sobre o tema da teologia espiritual e a santificação do cristão, a partir dos principais teólogos que se tornaram referências no tema: Pe. Juan Arintero, Pe. Adolphe Tanquerey, Pe. Antonio Royo Marín e Pe. Reginald Garrigou-Lagrange. Aprofundou-se a compreensão do texto de Santa Teresa de Jesus e das obras de São João da Cruz, Santa Teresinha do Menino Jesus, Santa Elisabete da Trindade e do Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus, buscando correspondências entre elas e com os teólogos anteriormente citados. A partir desta análise, promoveu-se uma síntese e estruturação conceitual a respeito do caminho espiritual proposto por Santa Teresa.
A pesquisa foi dedutiva, pois averiguou a aplicação prática das proposições levantadas pela autora após a publicação da obra e seu caráter eficiente e universal. Também prosseguiu de forma indutiva, utilizando-se das experiências dos outros santos citados para se determinar a equivalência de suas espiritualidades com as proposições de Santa Teresa de Jesus. Tal confrontamento e validação, serviu para acentuar a universalidade da obra, dirimindo quaisquer interpretações personalistas e psicologizantes que busquem frisar somente o caráter de experiência pessoal do relato de Santa Teresa. Finalmente, a obra “Suma Teológica” de Santo Tomás de Aquino foi utilizada para a validação dogmática das proposições e direcionamentos da autora.
Devido à brevidade do artigo, foram descartadas as observações e apontamentos similares entre os autores consultados, bem como as contribuições de Santa Elisabete para a compreensão das moradas mais íntimas. Pelo mesmo motivo, para fins de validação dogmática com a obra de Santo Tomás, escolheu-se somente os dois pontos de principal polêmica na aceitação do “Livro das Moradas ou Castelo Interior”, explicados mais acima no corpo do artigo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente, a espiritualidade cristã vive um período ímpar e, por isso, ao mesmo tempo rico e perigoso: se por um lado a Igreja deixou clara a obrigatoriedade de santificação pessoal do cristão e possui inúmeros textos de espiritualidade, por outro lado, não consegue revelar um caminho claro e seguro de santificação pessoal para conduzir a grande massa de crentes. Some-se a isso, a dificuldade em se diferenciar com segurança o que são verdadeiras espiritualidades e o que são espiritualismos, além da fácil disseminação destes últimos num ambiente global sedento de interioridade e experiência do sobrenatural, e temos um problema difícil de se resolver.
No entanto, uma análise atenta do “Livro das Moradas ou Castelo Interior”, de Santa Teresa de Jesus, revela seu caráter único de uma via completa para a santidade, em seus vários níveis de oração e intimidade com Deus. Embora escrito a mais de quatro séculos, por se tratar de explicitação sobre o percurso da vida espiritual, permanece atual e referencial, lançando luzes sobre as mais difíceis questões da teologia espiritual.
Seu tom prático e sua linguagem coloquial, à primeira vista, escondem suas firmes bases sistemáticas, gerando uma falsa impressão de se tratar somente de uma visão particular da autora ou uma experiência pessoal e irreprodutível. Por isso, dando seguimento a este artigo, seria de grande utilidade um estudo que aprofundasse as correspondências entre esta obra e a obra de Santo Tomás de Aquino para benefício da compreensão de ambas as teologias. Tal estudo poderia fornecer caminhos práticos para a vivência das verdades de fé enunciadas pela teologia sistemática e embasar cientificamente as experiências relatadas pela autora, construindo uma verdadeira teologia espiritual.
Também salienta-se que, a descrição de Santa Teresa do percurso espiritual, embora sendo completa, é muito sucinta na maioria das vezes. Este pormenor e a diferença linguística gerada pelo passar dos séculos, dificultam sua compreensão imediata. Um estudo comparativo entre as obras dos doutores e santos carmelitas e Santa Teresa, além dos exemplos expostos aqui, traria inúmeros benefícios para a compreensão de todos os autores e para a consolidação de muitos pontos deste caminho prático de santidade. Este trabalho já foi parcialmente realizado pelo Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus (2015), mas precisa ser atualizado, pois data da primeira metade do século XX, e não reúne os escritos de Santa Elisabete da Trindade, fundamentais para uma boa compreensão das últimas moradas. Outros autores também seriam bem-vindos, principalmente nas moradas que compõe o período pré-místico ou ascético, da primeira à terceira morada, como Santo Inácio de Loyola, com seus exercícios espirituais e São Josemaria Escrivá, o santo da ascese e da santidade no trabalho cotidiano.
A visão completa sobre a vivência e o progresso da vida espiritual que nos apresenta Santa Teresa de Jesus (2018, p.625-812) em seu “Castelo Interior” e sua perfeita correção e alinhamento com a doutrina católica, provocou a percepção de que a obra pode ser utilizada como parâmetro de análise para outras espiritualidades. Caminhos espirituais que contradizem ou negam aquele explicitado por Santa Teresa em suas moradas deveriam, a priori, serem melhor observados e questionados. Embora o Espírito Santo atue de formas sempre novas, segundo o Catecismo da Igreja Católica (2017, p.532) existem princípios que regem e balizam o progresso espiritual, como a união sempre mais íntima com Cristo até a passagem pela cruz, a renúncia e o combate espiritual. Estes princípios, enquanto progresso da vida espiritual, foram extensa e completamente desenvolvidos por Santa Teresa de Jesus em seu “Castelo Interior”.
Estabelecer uma base comparativa com o “Castelo Interior”, como uma fiel pedra de roseta, ajudará a desmascarar os espiritualismos ainda disfarçados de espiritualidade ou caminhos espirituais que já existam ou possam surgir neste século tão ansioso por “espiritualidades” e “vivências espirituais”, mas nem sempre preocupado com a solidez e correção de seus ensinamentos.
REFERÊNCIAS
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