PORTAS ABERTAS

 Carpinteiro dos bons, num tempo em que as portas eram feitas no formão e sob medida, o jovem barbudo e cabeludo, era a cópia fiel do talento do pai, que lhe ensinou o oficio. Ele nem imaginava que um dia ao dizer bata e a porta se abrirá, seria mal interpretado por alguns, que preferem abrir outros tipos de portas, em vez da porta do coração. Até porque só se abre a porta do coração para quem realmente se ama. E vale lembrar que coração só tem uma porta, a da frente. Mas hoje as grandes mansões têm portas largas e variadas. Não só de madeira, mas de metal, vidro e até plástico. Na década de 70 toda grande casa tinha porta da frente, porta lateral e porta dos fundos. Lembro da dona Berenice, uma vovó de descendência portuguesa, que gerou 12 filhos e deles nasceram mais de 40 netos. A matriarca, sempre muito respeitada e querida por todos da família e da vizinhança, tinha um costume tradicional daquela época. Só abria a porta da frente em datas de celebrações importantes. Natal e Páscoa eram as mais esperadas. Era a porta com a melhor e mais moderna maçaneta da casa. A criançada vivia esperando a oportunidade de passar por ela, só pra ter o gostinho de mexer na maçaneta e sentir o estalo suave que ela fazia. E sempre que a porta da frente era aberta, a sala estava impecável, com tacos bem encerados e reluzentes. Numa parede um quadro oval e fotos em preto e branco de dona Berenice e o esposo Francisco. Em outro canto da sala a marca de fé e respeito às coisas que são do alto. Um quadro do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, que impactava todos, tamanha serenidade e divindade que representava.Em domingos de almoço em família, era a porta lateral que se abria. Ela dava acesso à chamada copa da casa, com uma mesa, várias cadeiras e muita conversa pra botar em dia, enquanto os som dos talheres faziam o arranjo de fundo. Ali também dona Berenice acompanhava as rádio-novelas, com histórias dramáticas que arrancavam suspiros e as vezes lágrimas, tamanha imaginação que aquelas ondas radiofônicas causavam. Era aquela porta lateral também que os netos mais próximos entravam correndo pra trazer a carta da filha mais velha que morava na capital. E mais uma vez a mesa amparava as lágrimas da senhora com óculos de graus elevados. Só que agora os olhos embaçavam de saudade mesmo!A porta dos fundos era usada todo dia. Era a porta mais larga da casa e a que sempre estava aberta o dia todo. Nela ficava o fogão a lenha que cozinhava o feijão de cada dia. O problema era a fumaça, que nem sempre seguia o caminho da chaminé e em vez disso infestava o espaço com cheiro insuportável. Outro problema era a sujeira insistente, que deixava o piso vermelhão, quase cinza de tanta poeira trazida pelos calçados de pessoas que só entravam pela porta dos fundos.A porta dos fundos  era lugar de acesso a todo tipo de gente. Entregadores mal humorados, vizinhos interesseiros ou fofoqueiros e patos e frangos,  que vez em quando resolviam carimbar o piso vermelho sextavado, com estrumes. Pela porta dos fundos também entrava o odor dos porcos, que ficavam no quintal da casa, lambuzados de lama e fezes geradas pela sobra de comida da casa e da vizinhança, também chamada de “lavagem”. Todo dia a lavagem depositada no cocho, ajudava a engordar o bicho. E no dia 24 de dezembro,  o porco, já obeso de tanta porcaria, acordava todos com seu grito agonizante, gerado pelo punhal que atravessava seu “sovaco” e ia direto no coração,  o transformando em ceia de Natal. Mas quando as trevas de cada noite escura chegavam, a pequenina lâmpada incandescente, de 40 velas ajudava a encontrar o trinco da porta dos fundos, que era fechada. Afinal, nenhuma imundice dura pra sempre.  E mais uma vez dona Berenice passava o rodo com pano úmido e água sanitária, pra eliminar todo o germe,  mau cheiro e podridão, trazidos por quem andou lá fora e não soube tirar as sandálias dos pés para entrar no lar de sua cozinha e de seu coraçãozinho. Afinal, nem todos tem capacidade de entender o amor de quem se dedica integralmente aos habitantes dessa casa comum e por isso estão encharcados no egoísmo e no sarcasmo da vida que os lambuza por fora e por dentro, sem que haja Berenice e água sanitária que os limpe e os façam lembrar da casa original, onde o amor nasceu e com ele o respeito e dignidade. E que se tenha a coragem de verdadeiramente abrir as portas do coração para que seu interior seja lavado de toda sujeira da maldade, com o alvejante perfumado do amor e compreensão que renovam todo o prazer de acolher os que chegam pra sempre e os que estão só de passagem em nossos sentimentos e pensamentos. Queira isso!!

Deus abençoe!

Wallace Manhães de Andrade
Comunidade Canção Nova
wallace.andrade@cancaonova.com


Jornalista, missionário da Comunidade Canção Nova, escritor, casado com Valeria Martins Andrade e pai de Davi Andrade, natural de Campos dos Goytacazes-RJ.