Para o ser humano não são suficientes relações meramente funcionais.
O ser humano precisa de relações interpessoais ricas de interioridade, gratuidade e oblatividade. Entre estas, é fundamental a que se realiza na família: nas relações entre os cônjuges, e na deles com os seus filhos. Toda a grande rede das relações humanas brota e regenera-se continuamente a partir daquela relação com a qual um homem e uma mulher se reconhecem feitos um para o outro, e decidem unir as próprias existências num só projeto de vida: “Por isso, um homem deixa seu pai e sua mãe, e une-se à sua mulher, e os dois tornam-se uma só carne” (Gn 2, 24).
Uma só carne
Como não captar o vigor desta expressão? A palavra bíblica “carne” não recorda apenas o aspecto físico do homem, mas a sua identidade global de espírito e de corpo. O que os esposos realizam não é só um encontro corpóreo, mas uma verdadeira união das suas pessoas. Uma união tão profunda, que os torna de certa forma um reflexo do “Nós” das Três Pessoas divinas na história (cf. Carta às famílias, 8).
Compreende-se então a grande aposta que emerge do debate de Jesus com os fariseus no Evangelho de Marcos, há pouco proclamado. Para os interlocutores de Jesus, tratava-se de um problema de interpretação da lei moisaica, que permitia o repúdio, provocando debates sobre as razões que o podiam legitimar. Jesus ultrapassa totalmente esta visão legalista, indo ao âmago do desígnio de Deus. Na norma moisaica ele vê uma concessão à “esclerocardia”, aos “corações duros”. Mas é sobretudo com estes corações duros que Jesus não se resigna. E como poderia, Ele que veio precisamente para os dissolver e oferecer ao homem, com a redenção, a força de vencer as oposições devidas ao pecado? Ele não receia indicar de novo o desígnio originário: “Desde o início da criação, Deus fê-los homem e mulher” (Mc 10, 6).
No início!
Só Ele, Jesus, conhece o Pai “desde o início”, e conhece também o homem “desde o início”. Ele é ao mesmo tempo o revelador do Pai e o revelador do homem ao homem (cf. Gaudium et spes, 22). Por isso, seguindo as suas pegadas, a Igreja tem a tarefa de testemunhar na história este desígnio originário, manifestando a sua verdade e praticabilidade.
Ao fazer isto, a Igreja não fecha os olhos às dificuldades e aos dramas, que a experiência histórica concreta regista na vida das famílias. Mas ela também sabe que a vontade de Deus, aceite e realizada com todo o coração, não é uma cadeia que torna escravos, mas a condição de uma liberdade verdadeira que tem a sua plenitude no amor. A Igreja também sabe e a experiência quotidiana ensina-lho que quando este desígnio originário se obscurece nas consciências, a sociedade é danificada de modo incalculável.
Sem dúvida, existem dificuldades. Mas Jesus não deixou de fornecer aos esposos os meios da graça adequados para as vencer. Por vontade sua, o matrimônio adquiriu, nos baptizados, o valor e a força de um sinal sacramental, que consolida a sua índole e as prerrogativas. Com efeito, no matrimônio sacramental os cônjuges como farão daqui a pouco os jovens casais dos quais abençoarei o casamento empenham-se a exprimir-se reciprocamente e a testemunhar ao mundo o amor grande e indissolúvel com que Cristo ama a Igreja. É o “grande mistério”, como lhe chama o apóstolo Paulo (cf. Ef 5, 32).
A bênção de Deus
“Que o Senhor, fonte de vida, vos abençoe!”. A bênção de Deus está na origem não só da comunhão conjugal, mas também da responsável e generosa abertura à vida. Os filhos são verdadeiramente a “primavera da família e da sociedade”, como recita o mote do vosso Jubileu.
Nos filhos o matrimônio encontra o seu florescimento: neles realiza-se o coroamento daquela partilha total de vida (“totius vitae consortium”: C.I.C., cân. 1055 1), que faz com que os esposos sejam “uma só carne”; e isto tanto nos filhos que nascem da relação natural entre os esposos, como nos que são adotivos. Os filhos não são um “acessório” no projeto de uma vida conjugal. Não são um “acessório”, mas um “dom preciosíssimo” (Gaudium et spes, 50), inscrito na própria estrutura da união conjugal.
Fonte: Homilia do Papa São João Paulo II – domingo, 15 de Outubro de 2000