Aslam eu quero…
Quero viver sobre os Teus olhos.
Para quem já leu o volume I de “As Crônicas de Nárnia: o Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa”, ou pelo menos assistiu ao filme, sabe bem que C. S. Lewis omite o diálogo entre Edmundo e Aslam, no alto da colina, quando o Leão perdoa o garoto por toda a traição.
O autor se limita a dizer que “saíram todos, e viram Aslam e Edmundo passeando, lado a lado, sobre a relva úmida. Não é preciso dizer para você (e o fato é que ninguém ouviu) o que Aslam dizia. Fique sabendo que foi uma conversa da qual Edmundo jamais se esqueceu”.
Essa lacuna, provavelmente proposital, sempre me intrigou e, ontem, ao som de “Fora do Compasso“, de Ilmar Quintanilha, eu me questionei: Se Lewis permitiu essa lacuna, com certeza queria deixar um espaço para que cada leitor pudesse preenchê-lo com seu próprio diálogo com o Leão.
Assim, comecei a me perguntar como teria sido esse diálogo com Aslam, se, ao invés de Edmundo, fosse eu no alto daquela colina. Ao chegar perto do Leão me senti pequeno, sem forças, quase que me arrependendo de ter subido aquela colina. Com enorme força gaguejei algumas palavras, quase inaudíveis.
– Aslam, é você mesmo? – Ele apenas confirmou com um aceno de cabeça, mantendo a expressão triste em seu rosto.
– Gostaria de conversar com você, filho de Adão. Eu entendo que as tentações foram muitas, mas ainda assim eu sempre acreditei que você seria capaz de resistir. – disse o Leão calmamente, mas com voz firme.
– O que o Senhor vai fazer comigo? Vai me matar? – disse, como se aquelas palavras não tivessem saído da minha boca, mas, de alguma forma, sentia que não havia motivos e nem como esconder qualquer coisa naquela hora, muito menos o medo. Estava ciente de tudo que fiz e de alguma maneira precisaria pagar.
– Eu jamais faria isso, filho de Adão. – disse Aslam, me surpreendendo. – Você e todos os seus irmãos sempre foram o que de mais caro cultivei. Apesar de tudo, ainda espero muito de você.
– Mas… eu traí você. Não serei punido? – mais uma vez eu quase não reconhecia minha própria voz.
Parecia algo impensável culpar a mim mesmo, mas a expressão na face do Leão era algo desconcertante e seu olhar parecia tocar mais fundo do que simplesmente meu exterior.
– De fato você errou, e essa será sua punição: a lembrança da traição e o trabalho de reconquistar a confiança de todos aqueles que você feriu. Não pense que isso será uma tarefa fácil. – eu não tive coragem de me virar, mas percebi que Ele estava olhando para todos os que estavam no acampamento atrás de mim.
Apenas concordei com a cabeça, porque já não tinha mais forças para formular ao menos uma frase de agradecimento. Caí de joelhos, a cabeça baixa, diante de Aslam. As lágrimas já rolavam pelo rosto e caíam no gramado. O Leão olhava aquela cena como se já soubesse o que estava por vir, e então se abaixou para mais próximo de mim. Não sabia o que esperar, mas parecia que algo dentro de mim ainda temia um golpe, mais do que merecido. Engano meu. Com sua enorme cabeça ele me amparou e me ajudou a levantar.
– Será que algum dia o Senhor será capaz de me perdoar por tudo que fiz? – perguntei ainda entre lágrimas, sem coragem de erguer a cabeça e olhá-lo nos olhos, pois aquele sentimento de arrependimento já não cabia no coração.
– Eu não só seria capaz – disse o Leão, erguendo minha cabeça com um suave toque da dele, – como já o perdoei antes mesmo que você pensasse em fazer qualquer coisa.
– Filho de Adão, não haja como se esse fosse o fim, mas um recomeço de algo muito maior que está por vir – disse Aslam, enquanto se virava e começava a caminhar lentamente em direção ao acampamento. Antes mesmo que me desse conta ele já estava longe.
– Aslam… – chamei com um tom de voz diferente, já que agora o sentimento de culpa não me tomava mais. Era como se todo o peso do mundo caísse por terra e de fato eu tivesse forças para recomeçar, como Ele havia dito poucos segundos antes. Definitivamente, algo tinha acontecido, algo que fugia aos meus sentidos e eu não sabia explicar: eu havia sido perdoado – … obrigado.
“Ele limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 4-5).
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