Ao ouvirmos o termo “tentações”, imediatamente pensamos na influência dos demônios sobre a vida espiritual. Isso está correto e não está! Não é somente sob a influência deles que agimos. A Teologia Espiritual católica, que utiliza toda a base da Tradição, do Magistério e das Sagradas Escrituras, nos lembra que são três os grandes inimigos do homem: o mundo, a carne e os demônios.
Então, entenda: sem dúvida somos tentados pelos demônios que querem nossa perdição eterna, mas muito mais amiúde, somos tentados pelo mundo que nos apresenta modelos, situações, oportunidades e estilos de vida contrários e prejudiciais à nossa saúde espiritual. Estar com a cabeça (e a vida) mergulhada nas notícias do mundo, no que acontece com a sociedade, na vida do amigo e no intenso mercado de trabalho, é colocar-se constantemente em tentação.
Com maior frequência, muito mais intensamente, e também estimulados pelos outros dois tentadores descritos, somos tentados por nós mesmos. Não se iluda achando que a “carne” é somente nosso corpo. A carne somos nós, com toda as nossas capacidades físicas, psíquicas, afetivas e espirituais. Somos uma unidade. Uma unidade que frequentemente atua contra nós mesmos. Existe uma antiga jaculatória espiritual que devemos rezar com frequência: “Senhor, livrai-me de mim mesmo!” É um tolo, ou ainda muito imaturo na fé, aquele que não percebeu que é ele mesmo o seu maior inimigo. Seu pior tentador.
Multiplique esses três tentadores pelo mundo hiperconectado em que vivemos, com múltiplas telas e gigantescas redes e temos um panorama assustador… Como tão bem ilustra Santo Antão, referindo-se à passagem do Evangelho em que Cristo diz que um ladrão não roubaria uma casa antes de amarrar bem o seu proprietário: “Na verdade, filhos, acontece que habitamos na própria morada do ladrão…“ Com nossa ajuda e nossa conivência (pelo menos no que tange a nossa própria vida) acabamos construindo uma sólida morada para o ladrão de nossa salvação completamente alheios à batalha espiritual.
Entendida essa realidade… Vejamos duas tentações da vida espiritual. Uma atinge mais os iniciantes e outra os que já são perseverantes.
As tentações do “querer entender”
É frequente nos que começam na vida de Fé ou que resolvem retomá-la com afinco, as tentações do tentar entender primeiro para depois fazer. É uma tentação que se desdobra em assuntos mais ou menos graves e também leva a pecados mais ou menos graves.
Os que sucumbem a essa tentação ficam paralisados na fé, prejudicam gravemente sua vida espiritual e, em última instância, candidatam-se à condenação eterna por meio da heresia e da apostasia. Afinal, quem nunca encontrou aqueles que “não concordam” com este ou aquele mandamento, esta ou aquela determinação do Magistério da Igreja? Sem floreamentos, o nome disso é heresia: negar parte do conteúdo da fé ou substitui-lo por algo que você (ou outra pessoa que você segue) considera mais correto.
Não é somente negar ou contradizer grandes artigos de fé como a Encarnação do Verbo ou que Deus é Uno e Trino… Basta dizer: sou católico, mas acredito que, em alguns casos, a pena de morte é necessária. Ou, acredito em tudo que a Igreja ensina sobre a vida espiritual, mas também acho que, quem quiser realizar um aborto, precisa ter autorização e suporte. Eis a heresia, eis o herético: Não concordo… penso diferente… acho que está errado…. a Igreja diz, mas não é bem assim.
Resumindo: o Depósito da Fé é completo, complexo e irredutível. Demorou dois mil anos para ser entendido e sistematizado e não se encontra plenamente finalizado porque ainda não entendemos tudo e com precisão. Ou aderimos a tudo, ou nos enganamos achando que fazemos parte de algo que, na prática, já abandonamos. Aqueles que não concordam com isso ou com aquilo, já se excluíram há muito tempo e parecem não perceber. Vivem uma vida de aparências. Filtrar o que se aceita ou não se quer aceitar da fé católica é viver, no mínimo, um protestantismo. De qualquer forma, o nome correto desta atitude é heresia. Pouco a pouco ela se estenderá à completa negação da fé: a apostasia.
Mesmo se não chegarmos ao extremo do pecado através da heresia e da apostasia, o “querer entender” para, somente depois, obedecer, é uma grande tentação. Isso porque existem assuntos e razões que demoramos anos para começar a entender na vida espiritual. Isso é fruto, principalmente, de duas coisas: um despreparo para o espiritual e uma imaturidade moral e psicológica. Cercados pelos sentidos e pelo mundo material, levam-se alguns anos para que se acostume com a realidade espiritual das coisas. E, mesmo nas situações cotidianas e em sociedade, demoramos muito tempo para amadurecer… Duvida? Na próxima vez que você for a um casamento, repare na cara dos noivos quando o padre cita os problemas e dificuldades futuros do matrimônio. Você vai ver sempre a mesma cara de quem está pensando: “- A gente se ama muito, isso nunca vai acontecer conosco!”
Então, paciência! Aprenda a conviver com as perguntas e não toma-las como inimigas. Não entende a necessidade do mandamento? Obedeça. Não consegue perceber porque o mal existe sendo Deus o sumo bem? Não desista. Não entendo porque o Papa tomou esta ou aquela decisão? Confie que quem o guia é o próprio Espírito Santo. Paciência, oração e estudo precisam fazer parte da vida de fé do primeiro ao último momento. No tempo devido, as coisas ficam mais claras. Ou não. E não existe problema em se admitir que não temos resposta pra tudo. O problema é achar que não existe resposta… não existe verdade… E, principalmente, viver como se não existisse a verdade ou que esta seja facultativa ou maleável segundo o meu pobre entendimento. Lembre-se: um veneno continua sendo mortal, mesmo que eu considere que não vai me prejudicar ou que seu gosto seja bom.
As tentações do “não progrido na vida espiritual”
Essas tentações são mais duras com aqueles que já vivem a fé há mais tempo. Afinal, quando o navio se afasta bastante do porto, ele vê à sua frente o mar. Atrás de si ele vê o mar, e também à direita, à esquerda e abaixo. Prestando bastante atenção, pode-se ver o céu refletido no mar, como tão bem nos lembra Fernando Pessoa: “Deus, ao mar, o perigo e o abismo deu. Mas nele é que espelhou o céu“. O que não deixa de ser tão imenso e sem referências quanto o próprio mar: um limpo céu acima, um limpo céu abaixo. Ou seja, é comum e natural, quando não se é mais um iniciante, perder a referência de onde se está.
Claro, às vezes, isso não é uma tentação, é pura constatação! Toda a busca de um caminho espiritual seguro e aprovado pela Igreja Católica que mudou minha vida e, depois, compartilhei no livro “Santidade para Todos: Descobrindo as Moradas Interiores” surgiu desta constatação: eu patinava na vida espiritual… parecia um carro atolado. Era um eterno avança e recua. Infelizmente, muitas pessoas, e até mesmo alguns que deveriam dirigir espiritualmente a outros, consideram que isso é normal. Não é. Não se engane.
Mas, consideremos que exista um progresso espiritual. E, anote: ele sempre existe se você está se mantendo em estado de graça. Mas pode parecer imperceptível algumas vezes. E aí surge a tentação: “Estou caminhando na vida espiritual? Parece que não estou… Então pra que todo esse esforço?” O resultado disso é um abandono da vida espiritual e o sujeito acaba muito pior do que quando começou (Lc 11,24-26). Para não cair nesse engodo, veja dois sinais de que sua vida espiritual está progredindo:
O Estado de Graça
Entramos em estado de graça santificante quando somos batizados e o perdemos quando cometemos um pecado mortal. Qualquer pecado mortal… seja “somente um” ou “do tamanho” que for, público ou particular, quer você considere pecado ou não. Para recuperar o estado de Graça Santificante é necessário uma boa confissão onde relatamos todos os nossos pecados, com vivo arrependimento e com a firme decisão de que não voltaremos a comete-los.
O Estado de Graça é a nossa união plena com Cristo e a Igreja. Ao fazermos parte do seu Corpo Místico somos naturalmente santificados, estamos em progresso espiritual. Quer você note ou não note. Claro, toda a eficácia mística de nossa santificação pode ser ralentada ou dificultada pela nossa conduta. Se, permanecendo em estado de graça (isto é, sem pecados mortais), não exercitamos os dons da fé, da esperança, da caridade e as virtudes, o progresso espiritual continuará existindo, mas será tão insipiente que seu barquinho parecerá realmente parado no imenso oceano da vida.
Mas, vale a lei: se você permanecer em estado de graça, pode levar uns 90 anos e ser uma santidade bem discreta, mas o progresso espiritual é real e acontecerá.
A vivência das Virtudes
Além do estado de graça (além dele… não sem ele! Atenção!), a vivência das Virtudes nos dão um panorama claro se existe ou não progresso espiritual. Quanto mais profundo o contato com Deus, melhor devemos ser em sociedade e com os outros. Ou seja, se realmente aplicamo-nos em crescer na Caridade, o Amor a Deus em primeiro lugar e com todas as nossas energias, a consequência lógica disso é que também cresceremos em caridade (em letra minúscula), a ajuda e o cuidado para com o mundo e nossos irmãos.
Então, quando sofrer tentações de que sua vida espiritual não está seguindo adiante, pare e observe o seu modo de se comportar na vida: Cresceu em paciência? Sua fé é mais firme? A temperança não é mais um desafio constante, assim como a castidade segundo o seu estado de vida? Preza pela justiça, mas a vive sob o olhar da misericórdia? Faça uma varredura e perceba se pode dizer que está crescendo verdadeiramente nas virtudes… este é o verdadeiro indicativo de progresso espiritual.
São Francisco de Salles, quando chamado a verificar se esta ou aquela religiosa realmente tinha uma espiritualidade relevante, era uma mística, ou se tudo não passava de uma discreta doença mental, começava sempre com a mesma pergunta: “Qual são suas principais virtudes? Como se comporta com as outras irmãs?” Dependendo da resposta, não precisava nem ir olhar de perto. Sendo bem claro: não são as horas ajoelhadas ou o trabalho missionário/pastoral que você executa que define o seu grau de espiritualidade, é o modo como você executa seu trabalho, a maneira como você se relaciona com os piores membros da sua família e como você age nos piores momentos do seu dia a dia. Sem virtudes palpáveis, não existe santidade verdadeira, existe enganação.
Por último, mas não menos importante, lembre-se que o critério de averiguação é uma comparação com você mesmo. Sou mais virtuoso do que era no passado? Posso dizer que melhorei muito no último ano, nos últimos meses? O caminho de santidade é pessoal e intransferível. Não utilize outra pessoa como critério dizendo: “Não sou tão paciente como fulano! Olha como ela vive tão bem o amor ao próximo, estou longe disso!” Ou seja, o seu progresso espiritual deve ser medido segundo O SEU progresso na vida, não os dos outros. Mesmo que para sua esposa, seus filhos, seus amigos, você esteja longe de “ser um santo”, se você está vendo progresso na sua vida, não desista. Siga em frente! Pode ter certeza que um dia você chega lá!