A curiosidade
por S. Agostinho
Segue uma reflexão interessante das “Confissões” de Santo Agostinho. Boa leitura!
Às anteriores acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além da concupiscência da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, e cuja servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na alma um outro desejo, que se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfação carnal do que a tudo conhecer por meio da carne.
É a vã curiosidade, que se disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Como nasce do apetite de tudo conhecer, e como entre os sentidos os olhos são os mais aptos para o conhecimento, a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dos olhos.
De fato, ver é função própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essa expressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento. Nós não dizemos: “Ouve como isto brilha” – nem: “Sente como isso resplandece” – nem: “Apalpa como isto cintila”. – Para exprimir tudo isso dizemos “ver ou olhar”. E até não nos limitamos a dizer: “Olha que luz!”, pois apenas os olhos nos podem dar esta sensação – mas, dizemos ainda: “Olha que som! Olha que cheiro! Olha que gosto! Olha como é duro!” Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é chamada, como disse, concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertence aos olhos, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam conhecer alguma coisa.
Daqui podemos distinguir claramente o papel da volúpia e o da curiosidade na ação dos sentidos. O prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso, agradável ao todo; a curiosidade por sua vez deseja o contrário, não para se expor ao sofrimento, mas pela paixão de conhecer por meio da experiência. Que prazer pode ter na visão de um cadáver dilacerado, que causa horror? E todavia onde há um cadáver, para lá corre toda a gente para se entristecer e empalidecer. E temem depois revê-lo em sonhos, como se alguém os tivesse obrigado a contemplá-lo, ou como se a fama de alguma beleza os tivesse atraído. O mesmo acontece com os outros sentidos, o que seria enfadonho enumerar.
É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidades nos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior, cujo conhecimento de nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenas pelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o homem a pesquisar, com fim semelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia.
E é ela, enfim, que, até na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais e prodígios, não para a salvação da alma, mas apenas pela ânsia de vê-los.
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Nessa imensa floresta, cheia de insídias e perigos, cortei e lancei para fora de meu coração muitos males, graças à força que me concedeste para tanto, Deus de minha salvação. Contudo, no turbilhão diário de tantas e tão variadas tentações que atormentam minha vida, quando ousarei dizer que nenhuma delas atrai mais minha atenção e não cativa minha vã curiosidade? Certamente que o teatro já não me atrai, nem me importo mais em conhecer o curso dos astros; jamais, para obter uma resposta, consultei as sombras, pois detesto todos os ritos sacrílegos.
Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento é bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua vontade.
Mas incontáveis são as pequenas e desprezíveis bagatelas que tentam cada dia nossa curiosidade! E quem poderá contar nossas quedas? Quantas vezes ouvimos contar banalidades!
Toleramo-las, de início, para não magoar os fracos, e depois, aos poucos, ouvimo-las com atenção sempre crescente!
Não vou mais ao circo, para ver um cão correr atrás de uma lebre; mas, passando casualmente pelo campo e vendo algo assim, eis-me interessado pela caçada, talvez até distraindo-me de algum pensamento profundo. E, se não chega a me fazer mudar o caminho do meu cavalo, desvio o curso do meu coração. Se após tal demonstração de minha fraqueza tu não me alertares para que abandone esse espetáculo, elevando-me a ti por meio de alguma reflexão, ou desprezando tudo e passando adiante, ficaria ali, absorvido como um bobo.
E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça de moscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animais pequenos, a curiosidade que despertam em mim não é a mesma? É verdade que depois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foi esse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e outra é não cair.
Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tua infinita misericórdia. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si grande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbam nossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa alma até teus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um ato tão importante.
Extraído do livro: “Confissões de Santo Agostinho”, se preferir, adquira a versão impressa
Nota: Mas, afinal “a curiosidade matou o gato?”1 Segundo a Wikipedia, trata-se de um ditado popular usado para alertar uma pessoa de que um mal pode ocorrer se ela for muito curiosa. Na Europa da Idade Média as pessoas não gostavam de gatos e aprendiam que os gatos pretos traziam má sorte. Assim preparavam armadilhas. A curiosidade do gato realmente acabava levando-o a morte.
Agora, trazendo o foco para a curiosidade humana2, a proposta desta reflexão veio após eu assistir ao filme “O Silêncio dos Inocentes” (The Silence of the Lambs)3 de Jonathan Demme, onde em um determinado momento o personagem Dr. Lecter, afirmou: “cobiçamos aquilo que vemos todos os dias”. Uau! Eureca! Na mesma hora, recordei deste capítulo no livro “Confissões” de Santo Agostinho4, que li durante o tempo que vivi a fase do Discipulado (em 2012) e resolvi compartilhar essa reflexão com você: que tipo de “alimento visual” tenho dado a minha mente?
Inicialmente, pode parecer um questionamento puritano (achando que estou falando de questões sobre sexualidade, pornografia, etc – também estou, mas não é só isso), porém, é um convite a aprofundarmos o entendimento sobre os sinais dos tempos: e dos nossos tempos tão midiatizado! “Tu te tornas aquilo que contemplas” afirmou São João Paulo II5, por isso, te convido, a refletir sobre o modo que você tem conduzido sua vida, suas escolhas.
“Os olhos são como uma luz para o corpo: quando os olhos de você são bons, todo o seu corpo fica cheio de luz. Porém, se os seus olhos forem maus, o seu corpo ficará cheio de escuridão. Portanto, tenha cuidado para que a luz que está em você não seja escuridão.” (Lucas 11,35)
- Que tipo de “alimento” você tem dado ao seu coração?
- O que você tem assistido na TV?
- O que você tem acessado na internet?
- O que você está lendo?
- O que você tem feito de sua vida?
Será que muitas de suas angústias, vícios e sentimentos depressivos não tem sido causados, a partir de uma curiosidade ou um desejo insensato de conhecimento? Será que você não tem perdido tempo de sua vida coletando informações inúteis?
Finalizo com o mesmo conselho que São Paulo fez à comunidade de Felipos6 (importante cidade da antiga Macedônia, fundada por Felipe II, em 358 a.C.): “Por último, meus irmãos, encham a mente de vocês com tudo o que é bom e merece elogios, isto é, tudo o que é verdadeiro, digno, correto, puro, agradável e decente.” (Filipenses 4,8)
Fonte:
- http://pt.wikipedia.org/wiki/A_curiosidade_matou_o_gato
- http://pt.wikipedia.org/wiki/Curiosidade
- http://www.imdb.com/title/tt0102926/
- http://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf
- http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/index_po.htm
- http://pt.wikipedia.org/wiki/Ep%C3%ADstola_aos_Filipenses
Que Deus nos abençoe.
Até a próxima.
Cleber Rodrigues
Comunidade Canção Nova