A visão do inferno como noite escura do espírito que purificou e fez progredir na caridade os três pastorinhos.
A Irmã Lúcia, ao ser questionada sobre o que santificou os dois Beatos, Francisco e Jacinta Marto, não hesitou em dizer que foi a visão que tiveram do inferno. Pode parecer estranho, mas esta resposta é perfeitamente coerente com a teologia da santificação. Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos e, em primeiro lugar, abriu os braços e então um grande clarão de luz os atingiu e fez com que recebessem uma infusão especialíssima da graça divina. A esse respeito, Lúcia disse que se Nossa Senhora não tivesse feito brilhar aquela luz sobre eles, teriam morrido de susto ao ver o inferno, porque a visão foi tremenda. Depois dessa visão, as três crianças tornaram-se fervorosas na pratica da oração e da penitência, pela salvação dos pecadores.
Na vida espiritual, uma pessoa fica santa porque a graça divina concede a ela uma purificação profunda e um progresso na caridade. Mas, para que isso aconteça, é necessário passar pelo que São João da Cruz chamou de “noite escura dos sentidos”. Essa purificação põe em ordem as paixões desordenadas da pessoa, para que ela seja mais dócil e comece assim o seu caminho de santidade, que Santa Teresa d’Ávila chamou de “quarta morada”. Essa noite escura – que fez os três pastorinhos, sustentados pela graça de Deus, progredirem na vida espiritual – foi a visão do inferno[1].
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A impressionante visão do inferno
Nas suas memórias, Irmã Lúcia descreveu a visão espantosa que ela, Francisco e Jacinta tiveram do inferno:
Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo, os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras ou bronzeadas, com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que delas mesmas saíam juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros. Esta vista foi um momento, e graças à nossa boa Mãe do Céu, que antes nos tinha prevenido com a promessa de nos levar para o Céu (na primeira aparição)! Se assim não fosse, creio que teríamos morrido de susto e pavor.
Em seguida, levantamos os olhos para Nossa Senhora que nos disse com bondade e tristeza:
– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração[2]. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz[3].
A forte impressão de Jacinta a respeito da visão do inferno
A visão do inferno horrorizou Jacinta a tal ponto que todas as penitências e mortificações lhe pareciam nada, para conseguir livrar de lá algumas almas. Muitas pessoas perguntavam a Lúcia como é que Jacinta, tão pequenina, compreendeu se deixou possuir tal espírito de mortificação e penitência? A esse respeito, a Irmã explicou:
Parece-me que foi: primeiro, por uma graça especial que Deus, por meio do Imaculado Coração de Maria, lhe quis conceder; segundo, olhando para o inferno e desgraça das almas que aí caem. Algumas pessoas, mesmo piedosas, não querem falar às crianças do inferno, para não as assustar; mas Deus não hesitou em mostrá-lo a três e uma de 6 anos apenas e que Ele sabia se havia de horrorizar a ponto de, quase me atrevia a dizer, de susto se definhar. Com frequência se sentava no chão ou em alguma pedra e, pensativa, começava a dizer:
– O inferno! o inferno! que pena eu tenho das almas que vão para o inferno! E as pessoas lá vivas a arder como a lenha no fogo!
E meio trêmula ajoelhava, de mãos postas, a rezar a oração que Nossa Senhora nos tinha ensinado:
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as alminhas todas para o Céu, principalmente as que mais precisarem[4].
Jacinta permanecia por grandes espaços de tempo, de joelhos, repetindo a mesma oração. De vez em quando, chamava por Lúcia ou pelo irmão:
– Francisco, Francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito, para livrar as almas do inferno. Vão para lá tantas! tantas!
Outras vezes, perguntava:
– Por que é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? Se eles o vissem, já não pecavam, para não irem para lá! Hás de dizer àquela Senhora que mostre o inferno a toda aquela gente (as pessoas que se encontravam na Cova da Iria, no momento da aparição). Verás como se convertem.
Depois, meio descontente, perguntava:
– Por que não disseste a Nossa Senhora que mostrasse o inferno àquela gente?
– Esqueci-me – respondia.
– Também me não lembrei! – dizia com ar triste.
Às vezes, perguntava:
– Que pecados são os que essa gente faz, para ir para o inferno?
– Não sei. Talvez o pecado de não ir à Missa ao Domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar pragas, jurar.
– E só assim por uma palavra vão para o inferno?!
– Pois! É pecado!
– Que lhes custava estar calados e ir à Missa!? Que pena eu tenho dos pecadores! Se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!
Repentinamente, às vezes, agarrava-se a mim e dizia:
– Eu vou para o Céu; mas tu que ficas cá, se Nossa Senhora te deixar, diz a toda a gente como é o inferno, para que não façam mais pecados e não vão para lá.
Outras vezes, depois de estar um pouco de tempo a pensar, dizia:
– Tanta gente a cair no inferno, tanta gente no inferno!
Para a tranquilizar dizia-lhe:
– Não tenhas medo; tu vais para o Céu.
– Pois vou – dizia com paz –, mas eu queria que toda aquela gente para lá fosse também.
Quando ela, por mortificação, não queria comer, dizia-lhe:
– Jacinta! Anda, agora come.
– Não. Ofereço este sacrifício pelos pecadores que comem demais.
Quando, já na doença, ia algum dia à Missa, dizia-lhe:
– Jacinta, não venhas; tu não podes. Hoje não é Domingo!
– Não importa. Vou por os pecadores que nem ao Domingo vão.
Se calhava de ouvir algumas dessas palavras que alguma gente parece fazer alarde de pronunciar, encobria a cara com as mãos e dizia:
– Ó meu Deus! Esta gente não saberá que por dizer estas coisas pode ir para o inferno? Perdoa-lhes, meu Jesus, e converte-os. Decerto não sabem que, com isto, ofendem a Deus. Que pena, meu Jesus! Eu rezo por eles.
E lá repetia a oração ensinada por Nossa Senhora:
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, etc[5].
A Beata Jacinta de Jesus Marto adoeceu em 23 de dezembro de 1918, atacada pela mortífera epidemia broncopneumonia que então grassava por todo o mundo. “Essa doença tão longa e tão cruel foi um verdadeiro martírio para a pobre criança que expiava no seu corpo inocente os pecados alheios”[6]. Jacinta morreu em Lisboa, no dia 20 de fevereiro de 1920, tendo-se confessado e comungado várias vezes durante a doença. Pouco antes de morrer, a Beata disse que Nossa Senhora lhe apareceu por duas vezes, alguns dias antes, e fez-lhe várias revelações, “condenando os exageros do luxo e as modas indecentes e declarando que o pecado que levava mais gente à perdição eterna era o pecado da carne”[7].
Os três pastorinhos e o sacerdócio batismal
Assim, essas três criancinhas, sustentadas pela graça divina, saíram da experiência dolorosa da visão do inferno com o coração totalmente amoroso e missionário. As crianças ficaram inquietas com o fato de que milhões de almas se perdem no inferno, mas também alegres e esperançosas em saber que podiam fazer alguma coisa: rezar e fazer penitência. As três crianças, que mal tinham entrado na idade da razão, empenharam-se em fazer orações, penitências e sacrifícios pelos pecadores.
Aquelas crianças, ao ver o inferno, ficaram inquietas pela urgência da salvação das almas. Aqui devemos fazer nosso exame de consciência, perguntando-nos: o que estamos fazendo pela salvação das almas? Os três pastorinhos ficavam sem comer, faziam jejum, ficavam sem beber água, pela salvação dos pecadores. Se crianças fizeram tanto bem às almas, nós podemos também.
Nossa Senhora perguntou aos três pastorinhos e pergunta a cada um de nós também: “Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?”[8] como aquelas três crianças, nós também podemos nos oferecer a Deus em sacrifício pela salvação das almas.
A Mensagem de Fátima nos recorda o sacerdócio cristão. Não importa a nossa idade, a nossa condição, somos chamados a nos oferecer em sacrifício pela salvação dos pecadores. A partir dos sete anos, da idade da razão, somos soldados de cristo e podemos exercer o nosso sacerdócio batismal e oferecer a Deus nossas orações e sacrifícios, pela salvação das almas. “Querei oferecer-vos a Deus?”, pergunta Nossa Senhora. A resposta, somente nós, pessoalmente, podemos dar a ela[9].
Links relacionados:
TODO DE MARIA. A consagração a Maria como escola espiritual.
TODO DE MARIA. Mudar de vida com o Projeto Segunda Morada.
TODO DE MARIA. Penitências e sacrifícios dos pastorinhos.
TODO DE MARIA. Purificar: inteligência, memória e vontade.
Referências:
[1] Cf. PADRE PAULO RICARDO. A mensagem de Fátima nos impele.
[2] A grande promessa de salvação, na Mensagem de Fátima, aparece muitas vezes ligada ao do Coração Imaculado de Maria.
[3] PADRE LUÍS KONDOR. Memórias da Irmã Lúcia, p. 121.
[4] Idem, p. 123. Irmã Lúcia ficou com a impressão de que as últimas palavras da oração se referem às almas que se encontram em maior perigo ou mais iminente de condenação.
[5] Idem, p. 123-124.
[6] SANTUÁRIO DE FÁTIMA. Documentação Crítica, p. 269.
[7] Idem, ibidem.
[8] PADRE LUÍS KONDOR. Op. cit., p. 82.
[9] Cf. PADRE PAULO RICARDO. Op. cit.