Meditemos sobre a obscuridade, a monotonia e as dificuldades na vida cotidiana da Sagrada Família de Nazaré.
Após a alegre e luminosa festa de Natal, após a festa da Epifania, em que a luz brilha ao longe, com a adoração dos Magos que mostra à Santíssima Virgem e a São José o que deve ser seu Filho; após também a festa da Apresentação no Templo, marcada pelas predições de Simeão e da profetisa Ana, eis que a Sagrada Família se lança na sombra.
Maria e José estão agora munidos de uma luz suficiente para avançar no caminho traçado pela Providência, para realizar o desígnio de Deus. Ei-los a caminho de Nazaré, esta cidadezinha desprezada em que a Sagrada Família vai viver durante longos anos, uma vida inteiramente ordinária: eles desaparecem.
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O caminho da obscuridade na vida da Sagrada Família
Eis o caminho das realizações: o da humildade, de obscuridade. Sim, eles estão munidos de luz, estão munidos de graças; mas, embora guardem a lembrança dessas graças, não têm mais delas a experiência atual. Vão a Nazaré para viver a vida ordinária, mergulhar no mistério, na obscuridade, como aquele viajante que, à tarde, deixa a casa iluminada: após ter aberto a porta, sai na noite, para empreender sua viagem, sob a chuva, sob a tempestade talvez. É nessas condições que ele vai viajar e chegar ao fim: assim é com a Sagrada Família.
Ei-los na obscuridade, obscuridade do exterior, pois não são conhecidos; não há mais cantos dos anjos, nem estrela que brilha sobre a casa de Belém, nem reis magos. Não há mais do que uma pobre casa, provavelmente escavada no rochedo da colina de Nazaré. Lá está a vida ordinária. José preenche seu papel de pai nutrício, operário. Ele será um dos operários da cidade, que se vem procurar para os humildes trabalhos. A Virgem Maria é uma mulher, uma mãe de família; ela tem um Filho que é certamente precioso. Mas esse Jesus, cuja divindade ela penetrou e cuja missão ela conhece, agora é uma criancinha que se desenvolve como as outras, que cresce em sabedoria e estatura… É possível para o Filho de Deus, para o Verbo encarnado, crescer assim? É por esse caminho de obscuridade, esse caminho ordinário, – pois é exteriormente um menino comum – que ele vai se tornar o grande Rei anunciado e que vai realizar sua missão? Sua divindade envolve-se de obscuridade; tudo é obscuro.
A Virgem Maria e São José, que conservaram todas as palavras e guardaram uma lembrança profunda de todos os acontecimentos, não compreendem, isso lhes está oculto. Sim, é na noite que eles avançam. O que será o futuro? O que será Jesus? Qual será sua sorte? A Virgem Maria sabe somente que ela sofrerá…[1] Como vai participar da missão de seu Filho? O que vai acontecer com ela? O que será de São José? Eles não sabem nada. Verbum absconditum, o Verbo está escondido… É a noite, a obscuridade: é assim que eles caminham, é assim que avançam.
As preocupações diárias aumentam a obscuridade. É a monotonia da vida ordinária, com todos os seus cuidados e problemas, que a Providência não resolve, mas que será resolvida pela afeição paternal de José, seu trabalho e também bondade maternal e doce da Virgem Maria. Obscuridade completa: ao redor deles, não se sabe, não se compreende. Como é que Israel não conhece aquele que lhe foi enviado, sobretudo após as manifestações que marcaram sua vinda à terra? Tudo isso está na sombra, não se sabe nada. José é um artesão, Maria é sua esposa, Jesus é seu filho, eis tudo o que se sabe, eis tudo o que se diz.
A vida ordinária de Nazaré e a obscuridade da fé
A rotina da vida ordinária envolve tudo: parece que toda luz foi naufragada na obscuridade, como o sol poente parece sepultar-se no oceano e nas nuvens do horizonte. Não há mais nada: eis a vida ordinária.
No entanto, a Santa Igreja nos faz festejar esta vida ordinária. Ela nos dá a Sagrada Família em sua vida ordinária como modelo, porque, em certa medida, dá-se o mesmo para nós. Nós tivemos nossa luz para partir, tivemos nosso apelo, nós o experimentamos. Deus não nos traçou detalhes para o caminho, mas ele nos fixou o fim e indicou o caminho. Nós recebemos essa luz de Deus na alegria, no entusiasmo, com promessas de fidelidade, de dom de nós mesmos. E, de repente, ou quase imediatamente, eis-nos na monotonia da vida ordinária. Esta grande vocação, este ideal, ei-los sepultados, por assim dizer, nos acontecimentos cotidianos, nas dificuldades banais, nos contatos às vezes penosos, com os outros, no trabalho cotidiano, que exige um esforço sustentado. Parece que não é a mesma coisa.
Como então realizar o nosso ideal? Como essa luz de Deus que nos foi dada vai verdadeiramente ser realizada para nós? Nós não sabemos: é a monotonia da vida ordinária de Nazaré. É o tempo das realizações: realizações do trabalho cotidiano, do trabalho humano intelectual ou material. É a hora dos contatos com os outros, a hora da vida simples. O que fazer? E por que isso? Para que nós provemos nossa boa vontade. A boa vontade e a fidelidade, o dom de si, que nós realizamos sob a luz de Deus, não são suficientes para Deus. Ele quer que as realizemos nessa vida ordinária, na obscuridade da fé. Ele quer que a lembrança das graças recebidas sejam suficientes para nossa fidelidade.
A fidelidade que Jesus pede é primeiro a fidelidade da fé: é preciso crer. E preciso crer no que ele nos disse, sem esperar nem penetrar todo o sentido. É preciso crer que é Deus que nos falou e que Ele tem um desígnio sobre nós. É preciso que nos retenhamos essa palavra, sem compreendê-la nem penetrá-la, e que nós fiquemos fiéis; que, através de tudo, nós creiamos em Deus, em seu chamado, em seu desígnio, em sua vontade. É preciso que nós creiamos nessas realidades que o resplendor da luz nos permitiu entrever por um instante.
A Virgem Maria se submerge no mistério de Cristo. Sim, é bem seu Filho, é bem o Filho de Deus, o Rei que foi anunciado; é bem aquele que ela concebeu por operação do Espírito Santo, aquele que deve se tornar o Salvador do mundo. Tudo isso é verdade, apesar das aparências, apesar das obscuridades que a envolve, apesar das aparentes impossibilidades para a realização do plano de Deus.
A fidelidade da fé na realização dos desígnios de Deus
Fidelidade da fé, do olhar de fé, nessa obscuridade que envolve tudo: nós mesmos e o desígnio de Deus, todas as realidades sobrenaturais que entrevimos. Fidelidade da fé que crê nessas realidades: isso é a fé. Há superfícies argênteas[2] que brilham às vezes, depois sua claridade se eclipsa, também ela: mas que elas brilhem ou que, ao contrário, seu clarão se apague, há sempre o ouro de sua substância. Há sempre o que Deus colocou no interior: sua luz, seu mistério, Deus mesmo.
Em Nazaré, Jesus é Deus, Ele é o Filho de Deus, o Verbo, encarnado. Maria é sempre a Virgem, Imaculada, Mãe de Deus e Mãe da Igreja; José é sempre o santo incomparável, o pai nutrício. O que importa a obscuridade? O ouro da substância permanece. Para nós também, o que importa a obscuridade que envolve o mistério de nossa vocação e de sua realização nas dificuldades cotidianas, obscuridade que tudo parece tornar mais espessa em certos momentos? A palavra de Deus permanece. O Verbo de Deus é cheio de luz e de graça; Ele se envolve de mistério, mas é sempre o mesmo, traz seu poder, sua fecundidade. Ele realizará o que disse.
É preciso que creiamos, sobre o plano geral como no domínio particular de nossa alma e de nossa vocação. O que nos foi dito, o que nos foi pedido, o que nos foi prometido, o ideal que Deus nos fez entrever, isso se realizará. Sob que condição? A de que nós creiamos nisso, de que, na obscuridade cotidiana e nas impossibilidades aparentes, nós demos a fidelidade de nossa fé; através de tudo, o olhar de nossa fé seja fiel, penetrante, constante.
A Sagrada Família de Nazaré e a humildade do amor
A esta fidelidade da fé que crê, que, através de tudo, descobre o que lhe foi mostrado e aí adere, acrescentam-se o esforço e a fidelidade cotidianos, comandados pela caridade e impregnados do amor. Não somente cremos nessas realidades, nós cremos que Deus está lá e que Ele nos falou, mas nós queremos ficar fiéis e fazer tudo o que exige a realização desse ideal, a ascensão para esses cumes. Nós o faremos, por mais dura que seja a marcha, por maiores que sejam as dificuldades, nós o faremos com amor.
Nós amaremos, trabalhando com um amor que deve crescer à medida que a dificuldade aumenta. É esse perfume de amor que agrada a Deus. O perfume de amor que colocaremos em todas as coisas, nas menorzinhas, sobretudo da vida diária, se une ao sopro do amor de Deus em nossa alma. É nosso amor, esse humilde amor, esse pobre amor que, unindo-se ao amor de Deus, realizará as grandes coisas que nos foram prometidas, a vocação que nós entrevimos. Amor que nós colocamos em nosso trabalho, amor que nós colocamos em nossas relações com o próximo, tendo, segundo a palavra do Apóstolo, “entranhas de misericórdia”[3], de caridade, como a Virgem Maria. Amor que nós colocamos na oração: o apóstolo São Paulo nos diz ainda para cantar os salmos e rezar continuamente (cf. Cl 3, 16). Nosso amor se exprimirá nesse canto, nessa oração, da manhã, da tarde, do dia, como fazia a Virgem Maria, a Sagrada Família de Nazaré; como fazia o Menino Jesus: Ele ia à sinagoga e rezava; Ele rezava continuamente. Eis o que Deus espera de nós eis como se realiza a santidade.
Isso exigirá evidentemente um esforço violento: só os violentos chegam à perfeição (cf. Lc 16, 16). O Reino de Deus exige violência e força; o esforço a empregar, as dificuldades tão numerosas e tão duras, vão talvez nos atemorizar; fazer-nos crer na impossibilidade: não é assim. Por que medir a dificuldade do amanhã? Abracemos cada dia simplesmente, o trabalho que nos é pedido, humildemente, pacificamente. O amor do qual teremos necessidade amanhã, mesmo se deve exigir um esforço violento, um esforço heroico, nos será dado no momento, nos virá de Deus. Eis a vida da Sagrada Família em Nazaré.
A realização dos desígnios de Deus na monotonia da vida ordinária
A santa Igreja coloca hoje em relevo um acontecimento; nessa monotonia da vida cotidiana, há, no entanto, alguns acontecimentos como a viagem a Jerusalém com o Menino Jesus[4]. O que significa esse acontecimento? É uma manifestação do Cristo, que vem, de alguma maneira, rasgar a obscuridade da noite, como uma luz na qual Maria e José descobrem de novo o que há no seu Cristo. Mas tudo isso aparece no sofrimento: perderam Jesus, sofreram muito. E esta luz que lhes descobriu a ciência de Jesus, que lhes mostrou como Ele dominava os doutores de Israel, cai, no entanto, na noite. Ele reclama agora sua independência: é preciso que eu esteja “nas coisas de meu Pai”, Ele reclama os seus direitos, sua liberdade para preencher a tarefa que lhe foi dada; qual? Não se sabe… Verbum absconditum, ainda, claridade na noite que parece tornar esta mais escura e mais dolorosa; e eles voltam para Nazaré, sem ter compreendido.
Eis a vida diária, na obscuridade, as dificuldades, a monotonia; a obscuridade que comanda a fé, dificuldades e monotonia que exigem um esforço perseverante. Eis a vida de Nazaré, aquela que nós todos devemos viver; eis a provação desta terra. Qualquer que seja nossa missão, qualquer que seja a grandeza dos desígnios de Deus sobre nossa alma, é desta maneira que nós a realizaremos.
Hoje, aproximemo-nos de São José, da Virgem Maria e do Menino Jesus, nessa monotonia da vida ordinária. Peçamos-lhes simplesmente, humilde e ardentemente, que nos façam compreender o sentido dessa provação; peçamos-lhes que nos façam aceitar, a fim de que caminhemos sobre suas pegadas, que sejamos fiéis como eles foram. Que eles nos deem sua fé, que nos deem seu amor humilde, seu humilde e possante amor, a fim de que possamos realizar como eles realizaram, para a glória de Deus e nossa santificação pessoal, para o bem das almas e da Igreja.
Fonte: FREI MARIA-EUGÊNIO DO MENINO JESUS. Virgem Maria: Mãe em plenitude, p. 89-96.
Links relacionados:
PADRE PAULO RICARDO. A família, escola da virtude.
TODO DE MARIA.Maria e José no mistério do Natal de Jesus.
TODO DE MARIA. O mistério da perda e do encontro de Jesus no Templo.
TODO DE MARIA. Uma meditação sobre a Epifania do Senhor.
Referências:
[1] Cf. a palavra de Simeão em Lc 2,35.
[2] Cf. São João da Cruz, Cântico Espiritual, canção XII, 4.
[3] Cl 3, 12-17 (Primeira leitura do dia para a festa da Sagrada Família).
[4] Cf. Lc 2, 41-52 (Evangelho do dia).